Primeiro apontamento sobre o horror de Bruxelas

Já contava com o chorrilho de opiniões insufladas, exageradas, desinformadas veiculadas nas redes sociais. Já contava com os status cheio de bandeiras, de cartoons com lágrimas, de mensagens que não adiantam nem atrasam. Já contava com o festival feito em torno da dor, de uma Europa que teima em esquecer-se...

Vamos por partes. O ataque em Bruxelas foi uma supresa apenas para os leigos e os menos informados. Bruxelas, capital informal da União Europeia e da OTAN, era um óbvio alvo. De resto, em Novembro de 2015, em várias conversas que tive com gente que me questionava sobre "próximos alvos" disse, e repito, que Bruxelas, Berlim e Roma são alvos simbólicos que estarão na mira das células adormecidas e dos lobos solitários do Daesh.

O ataque em Bruxelas permanece no domínio do simbólico, tal como acontecera com o duplo atentado de Novembro em Paris e em Beirut (muita gente parece ter-se esquecido de Beirut). Os múltiplos atentados em  Ancara e Istambul são relevantes, claro, mas pertencem a uma ordem diferente de motivações e justificações.

O ataque em Bruxelas é um ataque ao "poder político" do Ocidente Europeu; após um ataque ao "centro civilizacional" (Paris) e ao "legado ocidental" fora da geografia do Ocidente (Beirut). É um ataque natural de quem quer retroceder no Tempo, sem entender que o retrocesso no Tempo é em si mesmo uma impossibilidade.

Sztompka, fala deste tipo de dinâmicas (em que existe um louvar do Passado, sem existir um real entendimento desse mesmo Passado) como sendo "incompetência civilizacional". Creio que estamos todos de acordo: o Daesh é muita coisa, menos civilizacionalmente competente. Nem entenderam ainda que o auge do Mundo Islâmico (que para nós se traduziu no Al-Andalus) coincide com o momento de maior abertura desse mesmo Mundo Islâmico!

O ataque em Bruxelas é também um aviso subliminar ao milhares de muçulmanos que fogem do conflito que lavra no Iraque e na Síria. Se esses mesmos muçulmanos pensam que a Europa da União proverá segurança e estabilidade política, que pensem duas vezes...  E por isso faz fraca figura quem culpa os refugiados, pelos atentados mais recentes em solo europeu. É mais fácil culpar o Outro, mas culpar o Outro pouco resolve o problema.

O ataque em Bruxelas revelou, uma vez mais, que a ideia de um continente-fortaleza em permanente clima de segurança é uma ilusão, sempre foi. A Segunda Guerra dos Balcãs (1991-2001), o Massacre de Munique (1972), e as Duas Guerras Mundiais tendem a ser "esquecidas", levando muito boa gente ao catastrofismo provinciano de um alegado apocalipse em marcha.

Não caminhamos para nada "pior", apenas relembramos (após o rebentar das bombas e o contar dos corpos) o que quisemos esquecer: que a segurança é ilusória e, paradoxo curioso, insegura. Precisamos reaprender a viver, não tenho dúvidas disso; mas precisamos, ainda mais, de reaprender a relembrar. E precisamos também de menos politiquês corretinho...

A vitimização do mundo pós-colonial não serve nem às ex-colónias, nem aos ex-colonizadores. As primeiras presas num discurso de lamentação cíclica, que impede entender o Passado como um todo e avançar para o Presente, porque o importante é manter o Agora em que se aponta o dedo e se fala de esperança, mas não se age sobre a mesma. 

As segundas, porque presas à auto-culpabilização, se vêm enredadas na incapacidade de agir. Nada pode ser feito, porque tudo viola sensibilidades. Isto serve quem mesmo? Ninguém! O Ocidente precisa (se não o fez já!) assumir culpa pelos seus erros, mas precisa também de encontrar mecanismos de acção-reacção que evitem um perigoso entorpecimento social e apatia comunitária.

Os atentados de Bruxelas apontam também para o fracasso da guetização étnico-religiosa, chamada de modo erróneo de Multiculturalismo, que se vive na França, Bélgica, Alemanha e não só. Não é por acaso que os mesmos países que o relatório da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas louvou pelas políticas de assimilação e integração multicultural (a saber Portugal, Espanha e Noruega) sejam também os menos expostos a actos desta natureza.

Não estou esquecido dos ataques em Madrid, em 2004, mas também não estou esquecido que falávamos na altura de outros actores (al-Qaeda) com agendas diferenciadas. O Daesh quer, primeiro que tudo, mostrar o fracasso do Ocidente e devolver ao Ocidente o medo, que gera insegurança, que gera intolerância, que gera militância, que gerará uma nova onda de violência pró-Daesh. A Al-Qaeda queria vingar-se do que fizeramos no Iraque...

Para alguém, como eu, que vive e trabalha (pela segunda vez) num país de maioria muçulmana (primeiro Turquia e agora Paquistão) foi curioso notar duas coisas: 1.) a maioria dos muçulmanos de imediato condenou os ataques e tentou expressar solidariedade para com o Europeu, que de súbito olhava o computador com lágrimas nos olhos; 2.) a maioria dos habitantes de Carachi reagiu de modo brando, sem exageros folclóricos, porque estão acostumados à ideia de que a segurança não é segura.

Os ataques de Bruxelas revelam também que a Europa não precisa de mais integração, mas sim de mais autonomia e de maior investimento em mecanismos de segurança. Se quisessemos mesmo mais integração os ataques de Paris em Novembro de 2015 ou os ataques de ontem em Bruxelas levariam à activação do artigo 222 do Tratado de Lisboa, ou do Artigo 5º da OTAN. E nada disso aconteceu!

É preciso devolver soberania aos Estados-membros da Europa da União; é preciso acabar com os mitos da segurança como um dado adquirido e voltar a apostar no investimento, inteligente e sem exageros, nos Exércitos nacionais e nas forças policiais. De pouco serve ter muita maquineta, quando não temos os recursos humanos necessários! É preciso debater se devemos diluir a politização de um espaço que se construiu sobre premissas económicas.

Para o Fidalgo poderíamos começar por dissolver o Parlamento Europeu, entidade que causa mais entropia do que benesses, e reduzir a Europa da União a um organismo de cooperação inter-estatal de cariz económico-financeiro; uma espécie de retorno à Europa pré-Tratado de Roma. A maior integração parece levar a uma maior descoordenação e isso em nada ajudará a evitar que actos como o de ontem se repitam.

De pouco importa dizer que tudo faremos para tudo ficar igual, porque isso é uma impossibilidade lógica. Não há hashtag ou bandeirinha na foto de perfil que mude isso! O que temos que fazer é perceber como os ataques de Bruxelas podem mudar muita coisa e, sem pressas e sem balelas, descortinar o que queremos que mude, como queremos que mude e porque queremos que mude. Afinal de contas para "segurar a segurança" é preciso entender a insegurança...

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