Mais de 40 dias, menos de 45 noites

Verde... Uma imensidão de verde. Uma imensidão de folhas verdes que bailam ao sabor do vento. Vejo verde, neste dia em que o sol não brilha, e o calor não desarma. Vejo verde e castanho e cinza. Sorrio. Não sei se escrevo sobre o castanho das árvores, onde o verde baila a valsa do vento, ou se escrevo sobre o castanho da chávena de café.

Estou aqui há mais de quarenta dias e menos de quarenta e cinco noites. Não posso dizer que não dei pelo Tempo passar, porque a Saudade conta cada segundo, mas perdi a conta ao que ela conta. Sei que os segundos, feitos minutos, transformadas em horas, metamorfoseados em dias passaram, mas não sei quantos passaram. Até tomar consciência do que não sei e passar a saber...

Ontem, enquanto passeava por Karachi, parei numa livraria e, num impulso que qualquer leitor compulsivo entenderá, comprei vários livros, de rajada, sem pensar muito. Um autor turco, um autor afegão e dois autores paquistaneses habitam agora ao lado de um autor português, que repousa na mesinha de cabeceira deste quarto que agora é meu.

Ainda não eram nove e meia quando o pequeno-almoço veio. Ishaq vem, como sempre, com um tabuleiro cheio e um sorriso simpático. Deixo que as cores despertem os meus sentidos: o verde do cacho de uvas, o amarelo das duas bananas, o vermelho da maçã, o castanho do pão torrado, o laranja da compota e o negro do café.

Saboreio tudo sem pressas, enquanto fito os autores que agora habitam comigo. Brian Crain dedilha no seu piano fazendo-me companhia, neste espaço feito de solidão, esperança, sonho e Saudade. Tomo sempre o pequeno-almoço a sós, na companhia imaterial de um músico. Ontem foi Taro Hakase, anteontem Farid Farjad. E fito de novo os autores. Apetece-me ler algo novo!

Escolho ao acaso. "O Prisioneiro" de Omar Shahid Hamid. E eu que me sinto cada vez mais Livre abraço o paradoxo e perco-me na leitura. Vejo, com olhos que não os meus, uma Karachi que aos poucos vou conhecendo. Descubro a cidade, enquanto me descubro a mim, e hoje nem sequer saí do quarto. O Tempo passa, a Saudade conta-o, mas Eu não sei o que ela conta.

Faço uma pausa! O ar enche-se com o som da mesquita. A melodia do azan (chamamento) para a salat (oração) do dhuhr (meio-dia), entoada pelo muezim, enche o espaço, onde o sol não brilha e o verde marulha ao sabor do vento. Passou mais tempo, do que era suposto. Coloco "O Prisioneiro" de lado, na companhia do "Livro Negro" de Orhan Pamuk. Exames aguardam pelo toque da caneta vermelha. Tenho afinal obrigações a cumprir, foi para isto que vim.

Abro o envelope e revejo gestos, rotinas e rituais que já tive na Turquia. Estava lá faz apenas um ano, mas Kırıkkale parece distar de mim uma vida, ou duas. Lá, como aqui, os exames aguardavam pelo toque da caneta (lá verde, aqui vermelha), que escreveria um número, que selaria aquele momento. Várias semanas de aulas, comprimidas  em hora e meia de exame e dois ou três números escritos no topo de um enunciado.

Por vezes não sei quem ensina e quem tem que aprender. Agarro mais um exame e deixo que a caneta  vermelha sobrevoe palavras e frases, como o avião que me trouxe sobrevoou montanhas e rios. Passaram mais de quarenta dias e menos de quarenta e cinco noites desde que cheguei aqui. Pronto a ensinar e desejoso de aprender. E no entermeio avalio; deixo que a caneta vermelha se cumpra e que o excel se preencha.

Preenchidas as tabelas arrumarei a caneta vermelha. E aguardarei por me preencher a mim. E mais logo, depois do último azan e de mais uma fatia de naan, voltarei ao "Prisioneiro" para que ele me liberte. E a Saudade contará o tempo, ao qual perderei a conta. E quando der por mim, terei chegado aos cinquenta dias...

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