Eleições Legislativas III: A minha estabilidade vale mais do que a tua...

Não ouvi o discurso do Presidente da República em directo, porque o fuso horário não ajuda nestas coisas. Mas li-o, três vezes. A primeira vez para saber o que tinha dito o actual residente de Belém; a segunda vez para perceber se ele tinha mesmo dito, o que eu tinha lido antes; a terceira vez para "cair em mim". E confesso que fiquei tentado a uma quarta leitura...

É conhecido o desprimor que tenho por Cavaco Silva, enquanto Presidente da República. E por isso tenho sempre a tendência para ver em tudo o que diz, faz, pensa, planeia motivo para crítica cerrada e para apontar o dedo. Mas desta vez, estou em crer, mesmo que o actual Presidente me fosse indiferente teria que reagir com asco e desagrado ao que li; ao que li três vezes, tal não foi o meu espanto.

Ao Presidente da República cabe a poder de indigitar o Primeiro-Ministro. Ninguém lhe nega isso. Mas deve fazê-lo, diz o artigo 187º, tendo em "conta os resultados eleitorais". Ora esses resultados deram, de facto, vitória à coligação "Portugal à Frente", mas criaram ao mesmo tempo um quadro parlamentar dominado por partidos de centro-esquerda e esquerda.

O Presidente optou por olhar apenas para um dos lados da equação, como de resto está no seu direito, mas depois meteu as "mãos pelos pés" e atrapalhou-se. Escolher a coligação para formar governo, enquanto vencedores das eleições, tem a sua legitimidade, mas tentar fundar essa legitimidade com base na descredibilização das demais forças políticas é algo que estranho e muito.

O Presidente da República, diz a Constituição com muita clareza, está a cima do jogo político partidário e deve por isso representar TODOS os portugueses. Ora o discurso de Cavaco Silva apenas representa aqueles que concordam com a sua visão de como as coisas devem ser feitas. Afinal Cavaco sempre achou que nunca se engana, nunca erra e raramente falha.

O discurso do Presidente da República, para o Fidalgo claro está, foi mais uma diatribe irada pelo falhanço dessa ideia supremacista e não-democrática do "arco da governação". Em verdadeira e substantiva democracia todos os partidos, aos olhos do Chefe de Estado e demais órgãos de soberania, valem o mesmo. Que alguma direita não entenda isto, é problema exclusivo dessa direita.

Numa democracia madura e consolidada não existem "partidos de primeira linha" e partidos de "retaguarda". Até porque ao submeterem-se ao escrutínio eleitoral, balizado por uma Constituição, todos os partidos aceitem à priori certas regras do jogo. E se os comentadores, analistas e leigos podem e devem comentar a natureza das opções políticas de cada partido, essa opção está vedada ao Presidente.

Enquanto árbitro do jogo político, o Presidente deve tentar sempre agir com o interesse do país (no seu todo) em mente e não apenas olhando para o interesse de uma parte do país em desprimor de outra parte. Se é verdade que a coligação de Direita venceu as eleições, não é menos verdade que quase 1/5 do país deu o seu voto a uma outra visão, a que Cavaco Silva ontem tirou (sem direito para tal!) legitimidade governativa.

Cavaco Silva, o homem, tem naturalmente preferência e opções suas; mas Cavaco Silva, o Presidente, devia evitar que as mesmas toldassem as suas atitudes. O problema, contudo, é que Cavaco Silva, o Presidente, sabe que Cavaco Silva, o homem, está revestido de um glória celestial que o impede de errar e por isso não existem filtros, barreiras e cuidados de maior...

Cavaco Silva confirmou que é menos Presidente e mais Relações Públicas do país. Diz Cavaco que é seu "dever, no âmbito das minhas competências Constitucionais, tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados". Achava o Fidalgo que o dever do Presidente, era presidir aos destinos do Estado dos portugueses. Mas o Fidalgo enganou-se...

Cavaco vai um pouco mais longe e assume que receia "muito uma quebra de confiança das Instituições Internacionais nossas credoras, dos investidores e dos mercados financeiros externos". Mas não receia uma quebra de confiança do 1/5 de portugueses que ostracizou com o seu discurso, ou dos mais de 50% de portugueses que não deram o seu voto para que o Primeiro-Ministro não mude. Os credores primeiro, os mercados segundos e quiçá, depois, os portugueses!

O discurso de Cavaco Silva acaba, curiosamente, por ser falacioso. Porque ao frisar tanto a necessidade de estabilidade, acaba por enveredar por uma prosódia polarizadora e incendiária, que em nada contribuirá para a estabilidade. E se a lógica é forçar a Esquerda a derrubar governo, criando instabilidade que depois será imputada a essa mesma Esquerda então não temos Presidente, mas aluno de Maquiavel...

Ou o Presidente da República acredita mesmo que apenas esta Direita, formatada pela sua mão, tem capacidade de criar estabilidade no país? É isso? A Esquerda está, portanto, condenada ao papel de Nero e a Direita ao de Julius Caesar? É que o segundo de tanto salvar a República, acabou por estrangular a mesma.

Corolário de um discurso triste, que mostrou que existe tanta Democracia para tão pouco Democrata, foi a tirada de "sigo a regra que sempre vigorou, repito, que sempre vigorou na nossa democracia: quem ganha as eleições é convidado a formar Governo". Não é Regra senhor, é prática, de praxis, de hábito repetido e continuado. Regra é tudo o que está na Constituição e nela não vigora este princípio.

Dizer que se faz assim, porque em 40 anos nunca se fez sem ser assim é argumento fraquinho. Talvez para adensar e consolidar o processo de transição democrática, ainda em curso em  Portugal, seja preciso fazer menos vezes "assim" e mais vezes "assado". A matriz da Democracia, afinal, é delimitada pela Constituição sem ser condicionada pela ritualização de certas práticas. Ou não são as crises "janelas de oportunidade" para inovar? Não foi isso que já disse antes, Sr. Presidente?

Efeito curioso, e potencialmente inesperado, do discurso do Sr. Presidente foi o de catalizar a união de um PS que aparece, nos media nacionais, dividido. A retórica belicista, de quem acha que só existe um caminho, porque a sua sapiência infinita lho diz e porque não queremos assustar credores (não eram parceiros?), acabou por sedimentar a união "do outro lado do muro", onde a mesma fraquejava.

Mais triste do que todo este exercício de oratória falaciosa, feito pelo Presidente, foi ler os comentários dos "Manuéis Normalinhos" para quem "isto era esperado"; "só isto podia acontecer"; "só isto iria acontecer". Quando temos do papel e da capacidade do Presidente da República uma visão tão redutora, tão espartilhada, talvez convenha questionarmo-nos da validade de termos um Presidente da República... mas isso fica para outro post!


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