Noivo Por Um Dia (5/5)

[...Continuação]

- Escolheste não ter raízes. Ser etéreo e vago; ser tão omnipresente e tão invisível quanto o ar. Todas as mulheres sabem que existes, que podem contar contigo; mas nenhuma te tem como seu. Foi isso que escolheste. – Vanessa evitava, por alguma razão, o contacto com os meus olhos. Ela não queria seguir com a conversa, mas eu ainda não estava satisfeito.

- E tu? O que escolheste? – Lancei mais uma bomba nuclear, feita de vocábulos e de ansiedades, para detonar nas mãos de Vanessa.

- Escolhi seguir em frente. Trilho um caminho recto, com objectivos, com metas, com aspirações. Seguir em frente foi a minha opção. – Vanessa respondeu secamente. Tentando mostrar-se enfadada pela conversa, quando na verdade sentia nela perturbação e inquietação.

- E porque tiveste que seguir em frente? – Repliquei eu.

- Desculpem chatear, mas a tua mãe está a chamar para o jantar Vanessa.

A tia da Vanessa salvara a sobrinha de responder às minhas inquietações. Vanessa voltou costas ao sol poente e caminhou até casa. Segui o mesmo caminho que ela, alguns segundos depois. Tínhamos chegado ali pelas escolhas e não pelo alcatrão da estrada. Eu sentia os meus demónios mais activos do que nunca.

Depois de curtir com Eva, a vida retomou o seu curso. Porque beijara Eva se não era ela quem queria? A minha amizade com a Vanessa foi-se desenhando e, numa tarde qualquer, decidira-me por uma vida sem vida. Por uma vida feita de máscaras fugazes e de despedidas planeadas. Uma vida onde a valentia de assumir os sentimentos não teria qualquer importância. Uma vida que me afastasse do altar…

- E já pensaram em marcar o casamento? – Perguntou a mãe de Vanessa entre a sopa de legumes e o frango assado no forno.

- Já falámos disso, mas nunca assentámos ideias. – Vanessa adoptou um tom de voz brincalhão. – Aqui o senhor tem medo de ir até ao altar. Tem medo que eu o deixe pendurado na hora final.

Um coro de alegres e descoordenadas gargalhadas explodiu na sala de jantar de Vanessa. Não era esse o meu medo. Como podia eu ter medo do altar, quando nunca tinha saído dele. A respiração tornou-se mais difícil. As lágrimas encheram-me os olhos e antes que me conseguisse controlar, irromperam pelo meu rosto abaixo. Sem pensar levantei-me da mesa e fugi até ao quarto da Vanessa.

As gargalhadas sumiram, como se nunca tivessem existido. Chorei enquanto olhava para as princesas de porcelana da Vanessa. Eram tão delicadas, tão frágeis, que a monstruosidade dos meus actos, das minhas escolhas, podia danificá-las. As lágrimas tornaram-me mais grossas. A porta do quarto da Vanessa rangeu um pouco, antes de sentir a mão dela tocar no meu rosto.

- O que foi? Deixaste todos preocupados! – Vanessa olhava surpresa para mim; não contava ver-me chorar. Porque razão choraria eu?

- É tudo tão claro. Já sei quem deixei no altar, de quem fujo desde aquele dia no campo de futebol. – Vanessa parecia não entender as minhas palavras. Franziu a testa, pensando, por certo, que estaria louco. – Eu fugi de mim. Eu espero por mim no altar. Espero pela minha alma.

- Não consigo perceber o que dizes!

- Foi por minha culpa que seguiste em frente. Não tinhas que o fazer, mas quando fugi de mim, quando me deixei no altar, obriguei-te a seguir em frente. Destruí a porcelana dos teus sonhos. – As lágrimas continuavam a correr pelo meu rosto, lavando as minhas veias. Os demónios que eu temia, que trancara num recanto negro do meu peito, transformaram-se em anjos e voaram.

- O que dizes?

- Eu sou Noivo por Um Dia, porque o dia em que te deixei no campo de futebol, em que cedi aos gritos dos outros, ainda não terminou. Eu queria ter o teu coração, ter-te sempre pertinho de mim. Queria amar-te porque eras única, mas acobardei-me e fugi. – Vanessa tirou a mão do meu rosto. – Fugi sem perceber que congelava a minha vida. Sem perceber que não saía da linha de partida. Fugi, sem sair do sítio.

- Agora é tarde.

- É tarde se escolhermos que é tarde. – Agarrei as mãos de Vanessa e olhei para os seus olhos infinitamente belos. – Eu escolho ser teu Noivo não por um dia, mas por uma vida. E se a vida for apenas um dia, ou um delírio que seja, pois serei noivo por um dia, ou por um delírio.

- E o que escolho eu?

- Podes seguir em frente, ou podes seguir contigo. – Larguei as mãos de Vanessa para limpar o meu rosto. – A decisão é tua. Eu já escolhi; não fugirei mais. Voltarei ao altar para me resgatar e entregar-me a ti.

Um beijo quente e húmido de Vanessa silenciou as minhas palavras. As bonecas de porcelana aplaudiram em silêncio mudo. Voltara ao dia em que a deixara sozinha no campo, mas desta vez sairia do campo de mãos dadas com ela. Não voltaria a entrar na profundeza escura dos balneários, para me lavar de mim mesmo. Desta vez escolhia ser eu mesmo; ser inteiro; ser humano e completo.

Vanessa pediu-me para descer. Respeitei o desejo dela. Ela escolhia um caminho onde eu não fazia falta. Ficou sozinha no seu quarto, olhando para as suas princesas de porcelana. Desci as escadas lentamente. Entrei na sala de jantar e pedi desculpa a todos pelo meu comportamento. Ninguém parecia importar-se com o sucedido. Perguntaram pela Vanessa, mas não sabia o que responder. Optei pelo silêncio.

Abrira o meu coração, trespassado pela claridade do que não vira até ali. Não era Noivo por Um Dia de alma e vontade; era-o por cobardia. Vanessa tinha aprisionado o meu ser, mesmo sem querer ser sua carcereira. Infelizmente despertara demasiado tarde. Vanessa seguira em frente; habituara-se à vida que escolhera. O pior de tudo é que sei que ela se afasta de mim por minha culpa.

Passado alguns minutos, horas tortuosas para mim, Vanessa saiu do seu quarto. Entrou na sala com um vestido de cauda azul-marinho, feito de delicada seda; ao longo do vestido tinha sido bordada, em azul-escuro, à sombra de uma grande rosa. Um delicado trabalho artesanal que assentava na Vanessa com uma perfeição onírica.

Esticara o cabelo artesanalmente e maquilhara os olhos. Um suave tom de rosa realçava os seus lábios carnudos. Nunca antes vira Vanessa assim. O espanto de todos os presentes, era infinitamente menor quando comparado com o meu deslumbramento: ela escolhera.

- Quero ser princesa! Ter o meu conto de fadas! – Vanessa avançou na minha direcção. – Não quero ter que seguir em frente. Quero seguir apenas; avançar passinho a passinho. Quero continuar o que nunca terminámos.

- Que assim seja!

Percebia no rosto dos presentes um sentimento de desconhecimento; até os podia ter elucidado sobre o que se passava, mas aquele era o nosso momento. Beijámo-nos outra vez, recuperando o tempo que não tinha sido perdido, mas sim congelado. Tudo o que tinha vivido nos últimos anos tornou-se fantasioso; irreal; imaginário. Vanessa e eu podíamos renascer.

Sem saberem o que fazer, os familiares de Vanessa bateram palmas. Tinha que ir ver a minha família, um destes dias. Tinha que recuperar o que congelara, mas que nunca perdera. Tinha que voltar a ser integralmente Eu e não uma simples mancha de gente. Tinha que me completar. Vanessa e eu sorrimos um para o outro. A estrada não nos levara ali, a estrada começava ali.

- Casamos no final do ano. – Anunciou Vanessa para gáudio dos presentes. – Que o final do ano seja o nosso princípio. – E de súbito passei a ser mesmo Noivo por Um Dia; pelo primeiro de muitos dias!

FIM


Comments