Noivo Por Um Dia (4/5)

[...Continuação]

- Os meus parabéns garanhão. A Daniela adorou a noite de ontem. – Vanessa não podia estar a falar a sério. A noite de ontem não acontecera. – Não sei o que fizeste, mas ela diz que és uma relíquia.

- A sério? – Recompus-me do choque inicial em segundos. Daniela gostara de uma noite que não acontecera. Tanto melhor assim. Saímos os dois a ganhar. – Bom, é para agradar que me pagam.

Não sei o que sentem os génios, quando são tocados pela inspiração divina, mas o que senti foi algo verosimilhante. Leonardo Da Vinci, Copérnico e Einstein que me desculpem, mas até eu posso sentir a inspiração divina descer sobre mim. Daniela não tinha sido abandonada no altar; não a tinha tornado na Outra, nem na Abandonada. Ela mantivera-se intacta, pura, virginal.

Teria sido eu deixado no altar? A violência da revelação fez-me perder as forças. Corri até à casa de banho e vomitei as entranhas. A Daniela incinerara a minha essência humana com dúvidas. Em que altura da vida escolhera ser isto? Esta espécie de vida, onde adiava tudo. Adiava, percebia agora, mas não podia fugir. Por muito que corresse, a meta mais não era do que a linha partida.

Lembrei-me do dia em que pela primeira vez vi, com olhos de ver, a Vanessa; a mesma Vanessa que deixei sozinha no campo de futebol, perante os gritos dos meus amigos. Jogámos a partida de futebol e fomos até aos balneários. Olhei para o fundo do campo e lá estava ela. Depois o abraço de um colega de equipa resgatou-me para as negras catacumbas a que chamávamos de balneários.

Tomei banho no meio deles, sentindo-me sozinho. Lembro-me agora que me interroguei sobre quem era, o que queria, enquanto me olhava ao espelho. Penteei o meu cabelo com o rigor necessário; tinha uma imagem a manter. Quando saí do balneário voltei ao campo mas a Vanessa já não estava lá. Obviamente teria seguido com a sua vida; mas o óbvio pareceu-me cruel e, sem ninguém ver, chorei.

Ergui a cabeça com esforço. Ter memórias, do que já fora, enquanto regurgitava era algo novo. A mão quente de Vanessa afagou-me o couro cabeludo. Os demónios já estavam soltos, podia senti-los caminharem pelas minhas veias. Inspirei fundo e reuni as energias que ainda tinha para me levantar. Vanessa seguiu atrás de mim, até me sentar no sofá da sala.

Foquei o olhar na televisão. Imagens de uma apresentadora quase semi-nua, aos saltinhos, encheram os meus olhos. Vanessa desaparecera. Não a conseguia ver, mas sentia a sua presença na minha cozinha. Ia preparar-me um chá. O som da água a ferver animou as células do meu corpo. Instantes depois, Vanessa acercou-se com uma caneca fumegante de chá de ervas. Obrigou-me a beber tudo até ao fim.

- Este fim-de-semana tenho um serviço especial para ti. – Vanessa falava mais devagar do que o normal, receosa de que eu não a acompanhasse. Anuí com a cabeça para que continuasse. – Uma cliente precisa que finjas ser o seu Noivo durante um dia, nada mais do que isso. Ela tem que apresentar-te à sua família.

Ora aí estava um pedido original. Os demónios que Daniela soltara, estancaram a passeata pelo meu corpo. Nunca antes fingira ser Noivo Por um Dia perante a família de qualquer das minhas Noivas. O que poderia eu fazer? Recusar é um mau princípio nesta profissão; mas não me apetecia entrar em charadas familiares.

- Quanto é que vou lucrar com isto? Não posso fazer o preço habitual. – Bebi três goles de chá antes de prosseguir com as minhas explicações – Uma coisa é fingir ser o Noivo de alguém num dueto pré-coreografado, outra é fingir perante uma plateia. Sou actor de monólogo sem plateia; se quisesse aplausos e espectadores não teria escolhido isto como vida.

- És tu quem define o preço. – Vanessa tirou o som do televisor. O gesto déjà vu assustou-me. Daniela também tirara o som do televisor antes de me atacar cruelmente, com os seus fonemas de garras afiadas. – Não me digas que não. És a minha única esperança.

As palavras de Vanessa bloquearam-me. Era ela a cliente? Porque precisaria ela de mentir aos seus familiares? A questão do preço esfumou-se. Não levaria um cêntimo que fosse a Vanessa. Voltei a ver-me no campo de futebol, com o rosto molhado pelas lágrimas. O grito de um amigo colocou-me em alerta, sequei o rosto e segui em frente. Nos dias que se seguiram não voltei a ver a Vanessa.

- Farei esse serviço inteiramente de borla. – Vanessa ia arguir contra a ideia mas consegui antecipar-me à sua vontade. – É esta a minha condição. Ou aceitas de borla, ou nada feito Vanessa.

- Que assim seja. – Vanessa agarrou na sua bolsa – Venho buscar-te amanhã pela manhã. Vamos até casa dos meus pais.

Vanessa deu-me um beijo na testa e saiu do apartamento. Com a chávena de chá a esfriar na minha mão fiquei a pensar no que acontecera. Ia ser Noivo por Um Dia da Vanessa. Seria a Vanessa feita do mesmo material da virginal Daniela? Ou tornar-se-ia a Vanessa na Outra da Rita e na Abandonada da próxima cliente? O que reservaria o dia seguinte?

O que restou do dia foi varrido velozmente. Num instante estava a levantar-me, de novo, da minha cama. Tinha meia hora para me arranjar, antes que a Daniela me viesse buscar. Tomei um duche rápido e optei por vestir um conjunto descontraído. Calças em tons de bege e uma camisa em tons de salmão foram a minha opção. Tirei a camisa, troquei-a por uma verde-escura, mantive as mesmas calças.

Fiz uma pequena mala de viagem, com duas mudas de roupa suplentes. A camisa em tons de salmão não conseguiu ter lugar na mala. Fica para a próxima. O carro de Vanessa esperava já por mim quando desci até à rua. Dei-lhe num beijo de bons dias e liguei a rádio do seu carro. Quis pagar a gasolina, mas Vanessa não deixou. Sei que o seu ordenado de jornalista é magrinho; faço numa noite mais do que a Daniela factura num mês.

O caminho para casa dos pais de Vanessa foi feito no silêncio. Ao contrário do que eu imaginara ela não tinha arquitectado uma estória. Não iria ter guião de auxílio, só me pedira para ser o mais autêntico possível. Missão complicada, tenho que admitir; não é propriamente fácil ser-se autêntico no meio de uma farsa. Será mesmo uma farsa o que os dois vamos fazer? Hoje não me posso perder com filosofias!

A viagem durou pouco mais de hora e meia. Revi durante a viagem coisas que poderia e não poderia dizer. Tentei desenhar um personagem, mas nenhum dos modelos me agradou. Teria mesmo que ser espontâneo, no meio da encenação para a qual tinha sido contratado. Abandonámos o conforto do alcatrão, trocado pelo trepidante caminho de terra que rasgava um campo cheio de acácias amarelas.

Os pais de Vanessa saíram para a rua pelo simples escutar do ruído do motor. O ronco do motor do carro da Vanessa anunciava o retorno da filha pródiga, perdida para a Cidade grande. Há quanto tempo não visito os meus pais? Há quanto tempo esperarão eles pelo ronco do motor de um carro que lhes devolva, por instantes, o filho? Pensei em tudo isto antes de sair do carro.

A mãe da Vanessa impressionou-me pela beleza dos seus cinquenta e um anos. Tinha uns olhos cândidos, cheios de doçura. Com um abraço terno recebia o homem que resgatara (pelo menos assim pensava!) o coração da sua filha.

O pai de Vanessa teria mais uns cinco anos do que a mãe, mas também conservava um rosto jovial. Deu-me um aperto de mão vigoroso, como que a mostrar que era o líder daquela casa. Marcava terreno a quem lhe levara a cria. Idiotices de homens!

Entrámos e um banzé de gente veio receber o noivo da Vanessa. Não contava com tantos rostos. Beijinhos e abraços sucederam-se até ser obrigado a sentar-me, com a Vanessa ao meu lado a acariciar-me o rosto. Parecíamos um casal e, por um segundo, senti aquilo como sendo real.

- Então, diga-nos lá, como é que conseguiu conquistar aqui a nossa Vanessa? – Perguntou uma das tias da Vanessa, falando em nome de toda a família. Instalou-se um silêncio algo incómodo.

- A Vanessa é mais do que se vê. Quanto mais a descubro, mais apaixonado fico. – Os demónios dentro de mim prepararam os tambores para o baile, que se desenrolaria brevemente no meu cérebro. As minhas palavras soavam naturais, quase verdadeiras.

Não houve mais perguntas. Um festival de aplausos irrompeu de todas as partes. Tinha passado no teste familiar; era o homem certo para a Vanessa. Dera a resposta que eles tinham ansiado; passava a ser um deles. Vanessa beijou-me nos lábios, perante um longo Ahhhh! de satisfação da plateia. Estava montado o espectáculo. Se eles soubessem a verdade… Se eu soubesse a verdade...

Antes de servirem o almoço, subimos um pouco até ao quarto da Vanessa. Todos os presentes quiseram levar a minha mala para cima. Deixei que um primo da Vanessa tivesse o privilégio de transportar o meu pequeno trolley, perante o olhar de inveja dos restantes. Fomos deixados em paz, com a porta fechada. A família não queria perturbar o casal de pombinhos.

O quarto de Vanessa foi uma surpresa. Além da cama de ferro, da mesinha de cabeceira a condizer e do armário de madeira branca, houve um móvel que chamou a minha atenção. Uma estante de madeira, com quatro prateleiras cheia de bonecas de porcelana, todas vestidas de princesa. Cada uma delas sentada numa pequena poltrona, com um vestido de gala e o cabelo bem escovado.

- É bonita a tua colecção de bonecas. – Agarrei numa com cuidado. Vestia um vestido azul, cheio de rendas brancas e tinha o cabelo aos caracóis. – Não te fazia uma coleccionadora de bonecas de porcelana.

- É mais uma coisa para descobrires. – Vanessa continuou a tirar a sua roupa da mala, sem prestar atenção ao que eu fazia. – Excelente a tua resposta há bocado. Já foste aceite por todos aqui. Fico a dever-te esta!

- Sem problemas.

Voltei ao campo de futebol. Aos dias que se seguiram. Não vi a Vanessa durante duas semanas. Quando a voltei a vê-la, trazia uma câmara fotográfica ao ombro; andava a caçar fotografias para o Clube de Jornalismo da escola. Ao seu lado, com um vestido de seda curtinho, vinha Eva.

Trocámos umas palavras circunstanciais, antes de lançar o meu charme sobre Eva. Era o esperado de alguém como eu e decidira fazer o esperado, para não esperar... Duas horas depois estaríamos aos beijos no balneário. Mas a minha cabeça não beijava Eva. Beijava-a…

A boneca de porcelana parecia sorrir-me. Aquilo não era uma colecção; era um sonho de infância. As bonecas eram retratos das aspirações de Vanessa. Ela também queria ter o seu momento de princesa. Fiquei absorto com a minha descoberta. Os meus demónios dançavam frenéticos. As palavras de Daniela ressoaram, de novo, na minha cabeça: “Por quem esperas no altar? De que foges tu?”

Descemos até à sala de jantar de Vanessa. Em redor de uma mesa enorme estavam sentadas dezasseis pessoas e ainda havia dois lugares vagos; os nossos lugares. A Vanessa sentou-se e beijou-me nos lábios. O almoço decorreu tranquilo, no meio da agitação normal causada por dezoito comensais. Uma sucessão de travessas desfilou pela mesa, antes de ser dado por encerrado o almoço.

O pai de Vanessa falou-me das memórias que tinha da filha e de como se orgulhava dela; enquanto a mãe e as tias de Vanessa tentavam arrancar pormenores de uma relação feita de irrealidade, tão sólida como manteiga no Verão. Se pudesse sorrir tê-lo-ia feito.

Fomos afastados um do outro durante a tarde. Nada que não contasse. Creio que teria acontecido o mesmo se fosse com os meus pais. O pai de Vanessa queria impressionar-me, mostrar que conhecia bem a sua filha, que a protegeria de tudo. Mas não era a Vanessa quem precisava de protecção.

Deixei que a minha imaginação respondesse a todas as questões. Os primos e os tios de Vanessa evitaram as perguntas mais pessoais, para minha satisfação. Não me apetecia ter que mentir nesse campo. Usar memórias de outras Noivas, de momentos instantâneos, como sendo momentos meus e da Vanessa, era algo que não me agradava. Só voltei a ver a Vanessa no final da tarde.

- O meu pai não te torturou com perguntas pois não? – Perguntou Vanessa com um tom de voz doce. Estava no seu meio, podia ser tudo o que a Cidade não conhecia. Ali podia ser genuína.

- Nada que eu não esperasse. – Puxei de um cigarro, o meu primeiro que fumava desde que ali estava. – O que é que nos trouxe até aqui? – Perguntei curioso por saber o que iria ouvir dizer Vanessa.

- As escolhas que fizemos. – Respondeu secamente, como que a tentar encerrar uma conversa indesejada. 

- E que escolhas fiz eu? – Insisti de novo. Desta vez desistir não seria opção, não seria uma escolha possível. Vanessa olhou para o sol poente; uma mancha vermelha na abóbada celeste que rasgava o amarelo das acácias campestres.

[Continua...]


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