Noivo Por Um Dia (3/5)

[...Continuação]

O champanhe chega à mesa. Daniel abre a garrafa, despeja um pouco do líquido dourado borbulhante numa floute de cristal e entrega-a a Daniela; em seguida, também eu recebo uma floute. Quando o empregado se retira, tocando-me discretamente no ombro, em sinal de fraternidade, erguemos as floutes e brindamos a uma noite de sonho. Já não é Daniela a banqueira, que tenho pela frente; mas Daniela, a adolescente com o sonho de ser princesa por uma noite.

O jantar decorre tranquilo, se é que se pode chamar tranquilo a um jantar destes. Daniela revela-se uma companhia agradável. Sabe manter o interesse de uma conversa, sabe cativar a atenção. A perna de Daniela roça na minha duas vezes. Pisco-lhe o olho esquerdo em sinal de aprovação. Sinto-a a desinibir-se. Por uma noite, por instantes que seja, tudo o resto vai deixar de ter importância.

Para sobremesa uma fatia de Romântica vagarosamente partilhada. É um dos maiores clichés da minha profissão. Dividir a sobremesa tem um efeito tão afrodisíaco nas mulheres, quanto o Viagra tem nos homens. Pelo menos a crer no que dizem alguns amigos meus, viciados no milagre vendido em cápsulas azuis.

Recusamos a sugestão do Daniel, para bebermos um digestivo. Temos outras coisas em que pensar. Afinal, sou pago há hora. Comigo tempo é dinheiro. Daniela quer ir dançar, descomprimir um pouco antes de passarmos aos negócios... Elogio a ideia, como se estivesse a pensar no mesmo.

Pago a conta, mais tarde tratarei de acertarmos contas. Chamo um táxi; enquanto esperamos beijo-lhe o pescoço. Daniela encolhe-se perante o inesperado frio das minhas mãos, aninhando-se no meu corpo. Segredo-lhe duas ou três coisas ao ouvido, antes de o táxi aparecer. A viagem é rápida, feita num silêncio sedutor. Daniela estuda o meu corpo; por certo imagina as coisas que faremos mais tarde.

Esta noite dançaremos no Holy Night. Este é um dos bares mais requintados da Cidade. Não fosse a proprietária ser minha cliente regular e duvido que entrasse no Holy Night. Daniela envia duas ou três sms antes de entrarmos no Holy Night. A exuberância da decoração agrada-lhe. É o cenário perfeito para nos conquistarmos um ao outro; não que isso seja preciso. Coisas de mulheres; não me compete perceber.

Enquanto dançamos na pista a minha mão explora as ancas de Daniela. Vanessa não se enganou, esta é um cliente especial. Por entre gritos consigo convencê-la a irmos andando. Não me apetece gastar as energias na pista de dança.

Daniela cora, usa o cabelo para disfarçar mas sei que está tão vermelha quanto o pimentão que normalmente usa nos cozinhados. Finjo não perceber que está embaraçada, como se esta fosse a sua primeira vez. E se for? Nunca pensei nisso… E se for? Se for paciência, não posso fazer nada quanto a isso.

Daniela marcou um quarto no Hotel Fine Art. São poucas as clientes que me levam aos seus apartamentos. Entendo isso como a ultima violação da sua privacidade. Já basta, ficar a conhecer-lhes o corpo, as taras, as fantasias. Tudo o resto é mantido na escuridão da doce ignorância.

O ritual do check in não me preocupa. Aproveito para fumar um cigarro e olhar o meu cabelo num dos espelhos do átrio. Não sei porque me preocupo com o penteado, se daqui a uns minutos estarei alegremente despenteado. Manias!

Terminado o check in vamos até ao elevador que nos conduzirá ao piso do quarto. Os nossos passos não ecoam, amordaçados pela alcatifa verde e azul. É muito curioso que tantas mulheres tenham fantasias com elevadores, mas poucas tenham coragem para avançar. É um dos mistérios que Freud deixou por resolver.

Ficamos no sexto piso, quarto 6. Já estive neste hotel umas vinte vezes, nenhuma das quais em férias. Ossos do ofício. Daniela vai até à casa de banho enquanto eu tiro o blazer e desaperto os botões da camisa. Está a ser tudo estranhamente lento.

Ligo a TV para ver o que está a dar no EuroSport. A esta hora olhar-se-á ao espelho enquanto responde a mais uma ou duas sms, penso eu. A porta abre-se. Daniela entra no quarto e a medo senta-se na cama. Pressinto uma conversa, antes de tratarmos do que verdadeiramente nos trouxe até ao sexto quarto, do sexto piso, do Hotel Fine Art.

- Quem é a noiva de amanhã?

A pergunta deixa-me espantado. De todas as conversas que já tive, e já tive algumas bem bizarras, nenhuma começou daquela forma. Saber qual a próxima cliente; qual a mulher que amanhã desempenhará o papel de Daniela. Vislumbro por momentos a minha agenda mental. Não vejo qual será o interesse de revelar a minha agenda, mas também não tenho motivos para não o fazer.

- Marisa, 23 anos, estudante de Medicina no último ano. – Abotoei dois dos botões da camisa. Não convém ficar enregelado enquanto conversamos e pressinto que a conversa se irá alongar.

- Então amanhã vais deixar-me pendurada no altar por causa de uma estudante? – Inquiriu Daniela enquanto tirava todo o som da televisão. Reparei que ela procurava qualquer coisa no meu olhar, mas fugi ao scanning. Se quisesse ser avaliado iria a um psicólogo.

- Sim, acho que se pode dizer isso. – Levantei-me da cama. A conversa estava a tomar um rumo descontrolado, mas até ali inofensivo. Tirei um cigarro do bolso e pensei começar a fumar. Lembro-me dos letreiros a vermelho e guardo o maço.

- Quem ficou hoje no altar? Sou a Outra de quem?

- Qual o interesse disso? Não é pela Outra nem pela de amanhã que estamos aqui. É pelo momento, pelo agora. – Disse eu, ansioso por encerrar aquela conversa. Já estávamos a ir longe demais.

- Gostava de saber. Nada mais que isso. – Daniela lançou-me um olhar cheio de ternura. Senti-me a desarmar e quando dei por mim estava tudo dito.

- Rita, 24 anos, designer de moda. Foi ela a Noiva de Ontem. – Volto a mexer no maço. Apetece-me ir até à varanda fumar todos os cigarros de enfiada, mas resisto ao impulso. As perguntas tinham que ficar por ali.

- Irónico, estou entalada entre a juventude. Eu, quase quarentona, entre duas miúdas. O meu passado e o meu futuro não são o meu presente. – Daniela levantou-se, pegou-me na mão e olhou-me bem fundo nos olhos. – Por quem esperas no altar? De que foges tu?

- Não sei se percebes, mas são vocês que ficam no altar da rotina à minha espera. Eu não espero por ninguém. – Argumentei num tom de voz mais ríspido, para transmitir o meu desconforto.

- Nem tu acreditas no que dizes, porque tenho eu que acreditar? – Daniela sorriu para mim provocadora.

Apeteceu-me bater-lhe. Puxar do cinto das calças e desfazê-lo no seu corpo. Inspirei bem fundo e larguei uma baforada de ar. O que eu não daria agora por um cigarro. Abotoei mais dois botões da camisa. O meu tronco musculado desapareceu entre o tecido da camisa azul; desliguei a televisão.

A conversa descarrilara e era impossível voltar ao que tínhamos sido. As palavras tinham violado o espaço; estripado violentamente o que nos unia. A princesa, virara outra coisa mais e eu não estava ali para qualquer outra coisa. Ou princesa, ou nada. Dou uma última oportunidade...

- Foi para isto que pagou? – Perguntei com a voz distante, tentando parecer imune às suas provocações retóricas.

- E se tiver sido? Se for este o meu prazer? – Daniela deitou-se na cama a olhar o tecto. Podia tê-la forçado a fazer o que quisesse, mas limitei-me a olhar o seu corpo. – E se eu tiver pago apenas para conhecer o seu altar? Para saber de quem é Noivo? Para saber desenhar o rosto de quem o deixou pendurado até hoje. – Daniela falava do que não sabia com tanta sabedoria. Noutros tempos, noutras circunstâncias, um enxerto de porrada calaria a sua voz, mas não abafaria os seus argumentos.

- Pois muito bem. Então se é assim, terminamos a noite agora. São 1.000€ e fica tudo resolvido. Boa noite!

Tinha que sair daquele quarto o quanto antes. Os demónios, que trancara no meu coração (é estranho, pensava não ter coração!), estavam de novo activos. Ansiavam pela oportunidade de atormentar a minha mente; turvar a lucidez frágil do meu espírito. Com um punhado de palavras Daniela disse que o dinheiro estava na recepção do Hotel. Nem me despedi; saí do quarto a correr. Entrei no elevador, pressionei seis ou sete vezes no “0”. O elevador demorou uma eternidade a chegar ao piso térreo.

Estuguei o passo na direcção do balcão de check in. Um envelope branco foi-me entregue pelo empregado. Contei dez notas de 100€, deixei uma ao empregado e chamei um táxi. Não contara voltar para casa tão cedo. Ia dormir na minha cama, por muito estranho que isso me parecesse. Há muito que não ansiava por retornar a casa e ficar por lá sozinho; longe de perguntas indiscretas.

A Vanessa ia ter muito que explicar. Subi as escadas devagar, tentando não me fazer ouvir. Do apartamento do Simão chegavam até à rua gritos eufóricos de uma das companheiras do estudante. Ao menos um de nós que tivesse sorte. Rodei a chave, a porta não chiou como esperei.

Tranquei-me em casa e corri para o chuveiro. Tinha que lavar o rasto inquisidor de Daniela da minha mente. Vanessa deixara mensagem no gravador. A Noiva do dia seguinte tinha desmarcado. Certamente nervosismo de última hora. Não era a primeira vez que me acontecia e, seguramente, não seria a última.

Deitei-me na cama, despertando a orquestra sinfónica da chiadeira. Fitei o tecto por segundos e, sem dar por mim, apaguei num sono profundo e vazio. Escuridão! No dia seguinte fui arrancado da cama pelo bater insistente da porta. Uma voz conhecida chamava pelo meu nome. Dormira com a roupa vestida, por cima dos lençóis. Apurei a audição. Era a Vanessa que chamava por mim.

Resmunguei algo para dar a entender que estava acordado. Levantei-me de uma vez da cama, com uma facilidade que me assustou. Fui até ao espelho compor o cabelo. Em passo lento fui até à porta. Vanessa entrou de rompante, sem pedir licença. Estava com o carimbo da preocupação estampado no rosto. Desviei o olhar, para que não lesse em mim a palavra “fracasso”. O que lhe teria dito Daniela?

[Continua...]

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