Noivo Por Um Dia (2/5)

[...Continuação]

No final dos meus 17 anos conheci a Vanessa. Na altura lembro-me que ela queria ser jornalista. Sonho de infância misturado com o fascínio de seguir a profissão de um pai ausente. Na altura não lhe dei grande importância.

Não era a mais vistosa do grupo de raparigas que o meu grupo de amigos andava a galar. Ficava feliz em viver no conforto do meio. Nem vistosa, nem horrorosa, normal. Confortavelmente sentava-se nas bancadas a ver-nos impressionar as suas amigas, enquanto fingíamos jogar futebol. E aos poucos a sua presença ia-nos contagiando.

Quando a maquilhagem e os perfumes Dior deixavam de fazer efeito, quando a roupa de marca e os saltos altos perdiam a piada restava-nos a naturalidade fresca da Vanessa. Sem se esforçar, sem entrar em jogos de faz de conta, Vanessa conseguia marcar posição e fazer-se sentir. Ela sabia que era somente uma questão de tempo, até se tornar visível aos nossos olhos.

Numa tarde qualquer, antes de irmos parodiar com a bola, dei conta da chegada antecipada da Vanessa. Pela primeira vez, desde que dera pela sua existência, chegava ao campo de futebol sem o grupinho do costume. Vestia calças de ganga, que ficavam impecáveis com a blusa azul clara, que comprara numa loja em saldos. Uns discretos brincos de prata e um toque de batom cor-de-rosa compunham o resto do figurino.

Até que era mais bonita do que me apercebera. Os meus amigos gritavam ao mundo proezas sexuais fabulosas, muitas das quais sabíamos serem pura imaginação, aceites por todos como realidades consumadas. Afastei-me com prudência, para que não dessem logo pela minha falta. Vanessa percebeu que eu caminhava na sua direcção, mas não alterou a trajectória rumo às bancadas.

- Sozinha Vanessa? – Perguntei eu lançando-lhe o meu sorriso de engate; uma das armas mais fiéis que desenvolvera no jogo da conquista.

- Nem por isso. O que não falta é gente à minha volta. – Ironizou Vanessa que, para minha estranheza, parecia imune ao efeito do meu sorriso. – Mas se te referes ao grupo de aspirantes a tias que me acompanha regularmente, então posso dizer que vim sozinha.

Gargalhei alto. Nunca antes pensara naqueles termos, mas a frase até que fazia muito sentido. A maioria das amigas de Vanessa tinha o comportamento fotocopiado de muitas das "tias" do social português, como se vissem nelas o ideal de feminino perfeito.

Uma falácia comportamental que ainda hoje tem os seus reflexos. Passámos do mérito à sociedade oca do flash. De facto não estranhei quando anos mais tarde, muitas delas invadiram as colunas das revistas sociais portuguesas.

- Então não queres ser aspirante a "tia" Vanessa? – Disse-lhe tentando engrossar a voz e lançando-lhe um olhar de galã de cinema.

- Descobriste isso sozinho, ou tiveste ajuda da wikipédia? – Vanessa continuava a resistir aos meus poderes de atracção, até ali 100% infalíveis. O meu grupo de amigos deu pela minha ausência e começou a apupar na nossa direcção. – Tu, se eu não errar muito, deves querer ser jogador de futebol.

- Por acaso não sei o que quero ser. – Admiti envergonhado, perante o olhar cheio de certezas de Vanessa. – E tu o que queres ser Vanessa? Qual o próximo passo?

- Jornalismo. Quero ser repórter num jornal. A rádio não me apaixona e não sou vaidosa que chegue para querer ser jornalista de televisão.

O mundo de certezas de Vanessa embateu de frente com a nebulosa que era o meu futuro. Ela tinha planos delineados, aspirações definidas, ambições concretas. Tinha as suas metas a atingir e sabia o que teria de fazer para chegar onde queria. A Vanessa era como os atletas olímpicos dos 100 metros, só olhava em frente para cortar a meta em primeiro.

Eu era mais como os corredores de fundo, os que fazem as maratonas de 40 km. Sabia gerir esforços, sabia seguir em frente, sabia que queria ser algo mais, mas só me importava em terminar a corrida, sem saber qual a minha posição. Vanessa subitamente tornou-se mais mulher. Porque só reparava em Vanessa agora? Onde se escondera ela durante 17 anos? Cedi aos gritos dos meus amigos e deixei-a sozinha, com a conversa por acabar.

Hoje estou particularmente dado a memórias penso, enquanto degusto a omeleta singela. Não sei o que me terá dado, mas o passado está mais vivido, mais presente, mais aqui. O noticiário não anima o meu humor. De pouco importo a um Noivo por Um Dia, como eu, quem é o primeiro-ministro, ou quem está em guerra contra quem. O mais certo é a mulher do primeiro-ministro, seja ele quem for, ter sido uma das minhas clientes e seria estranho vê-la na televisão com honras de Estado.

No atendedor de chamadas tenho três mensagens. A primeira é da minha agente de viagens a confirmar o meu voo para Pukhet, onde vou tirar umas merecidas férias. Há pequenos luxos a que não gosto de me privar e viajar é um deles.

Normalmente quando viajo, em lazer, acabo sempre por trabalhar um pouco. Neste ramo não se podem desperdiçar muitas oportunidades. Na Cidade do México os extras acabaram por render quase 10.000€, em Buenos Aires fiz mais de 20.000€ e em Bora Bora por pouco não facturei 50.000€.

A segunda mensagem é de um colega de profissão, a pedir um ou dois contactos da minha agenda porque o mês dele não lhe tem corrido propriamente bem. Quando somos Noivo por Um Dia, coxos e baixinhos, as coisas tornam-se mais complicadas. A sorte do meu colega é a sua forte presença social e a capacidade de fazer as pessoas pensarem e fazerem exactamente tudo como ele quer. É um pequeno espanto vê-lo em acção.

A terceira mensagem é da Vanessa. Mais um contacto de uma cliente que quer ter um Noivo por Um Dia. Ouço o perfil e fico curioso. Daniela, 39 anos, banqueira, divorciada há três dias, sem filhos. Vanessa avisa que enviou para o meu e-mail uma foto da cliente, mas adianta que vou ficar espantado. Com uma gargalhada irónica acrescenta ainda que “esta é das que dão bónus”.

Até há hora marcada tenho tempo para ir ao ginásio. Quando o nosso corpo é o nosso escritório a manutenção tem que ser feita diariamente. Nada pode estar fora do sítio. Este é um ramo oculto por entre as sombras dos candeeiros das cidades e os vidros fumados, mas altamente competitivo e lucrativo. Uma falha, um pequeno deslize e tudo o que construímos é desfeito, como se não valesse nada.

No ginásio, ao contrário da maioria dos homens, não procuro seduzir mulheres, exibindo o meu corpo, ou passeando-me piscando o olho. O ginásio é o meu santuário, o meu refúgio, o meu lugar de meditação. No ginásio procuro a paz que no dia-a-dia me foge. A paz que me fugiu há tanto tempo, que duvido reconhecê-la, mesmo que nela tropece por acidente.

Enquanto as minhas células queimam as calorias das refeições pré-cozinhadas com que me alimento, o meu cérebro queima as memórias das minhas clientes. Prefiro esquecer nomes, rostos e moradas. É mais fácil viver quando cada dia é uma constante redescoberta. Prefiro o desconforto da instabilidade, de não saber se vai chover ou se vai fazer sol, à rotina e à maquinação da minha vida.

Em definitivo hoje estou para a Filosofia. Se pegar num livro e me dedicar com muita atenção às premissas dos grandes autores aposto que descubro os erros contidos nos seus pensamentos tão habilmente erguidos. Sinto-me capaz disso e não duvido que seria capaz… Se fosse essa a minha natureza. Eu não sou Filósofo, sou um epicurista, ou empirista se preferirem; sou um dos que vive pelos sentidos, para os sentidos e está encerrada esta questão.

Por volta das 17h, depois de expelir pelos meus poros três garrafas de água, retorno ao meu apartamento. A água do chuveiro recebe-me num abraço quente, sem as exigências a que estou habituado. “Faz assim…”; “Gostava de experimentar aquilo…”; “Queria sentir acolá”. Enquanto a água escoa pelo ralo peço aos Deuses que levem estes pensamentos para fora de mim.

A escolha da roupa, quando somos Noivos por Um Dia, é vital. Há que perceber as expectativas de quem nos paga. Escolho um casual chic, para uma mulher bem sucedida como a Daniela. Calças, blazer, meias tudo pintado de negro, com uma camisa azul clara, desabotoada até ao terceiro botão. Como adereço apenas um relógio Cassio, feito de titânio. Um pouco de cera modeladora para espetar o cabelo e duas borrifadelas de perfume Gucci, uma no pescoço e uma no pulso.

Devo encontrar a Daniela no Étoiles, um dos restaurantes mais luxuosos da Cidade. Provavelmente estragaria o romance ficcionado, se dissesse a Daniela que os empregados do Étoiles me conhecem e que fazem parte do jogo. Provavelmente ela não vai querer saber que dentro do Étoiles já comecei mais romances de 24 horas do que se começaram guerras no Médio Oriente em 1000 anos.

Chego, como sempre, cinco minutos depois da hora combinada. A ansiedade que a minha ausência provoca é um dos trunfos que aprendi a usar. O empregado, Daniel penso que é esse o seu nome, indica-me a mesa onde Daniela olha impacientemente para o relógio Cartier. Estendo-lhe uma nota de 50€ para que leve uma garrafa de champanhe para a mesa. Com um piscar de olhos a combinação fica selada e a nota de tons laranja desaparece dos meus dedos.

Olho para Daniela pela primeira vez. Para quem fez 39 anos, Daniela está muito bem. Não lhe daria mais do que 29 anos, 30 anos no máximo. Pela forma perfeita da sua silhueta adivinho uma nadadora amadora. O cabelo ruivo, descaindo em cachos, lembra-me rolos de especiarias indianas. Tem olhos negros profundos, encaixados num rosto onde se desenham pequenas sardas. Vai ser uma noite interessante, penso para mim.

- Daniela presumo! – Qual carteirista profissional roubo-lhe a mão onde deposito um beijo. No seu olhar vejo que estou perdoado, mas continuo a desempenhar o papel que decorei com o tempo – As minhas desculpas por deixá-la sozinha. Não que sirva de desculpa, mas o trânsito desta Cidade está cada vez pior.

- Não tem importância. – Não é sincera no que diz. Se fosse um dos subalternos que chefia diariamente já estaria com um raspanete gravado nas minhas orelhas. Tem ar de ser autoritária, mas está mais derretida do que chocolate suíço no deserto do Saara – Sei o quão horrível é conduzir nesta Cidade.

Pisco-lhe o olho, grato pela sua compreensão. Daniela cora um pouquinho. Está a viver um sonho de infância. O seu momento de princesa. Todas as mulheres sentem a necessidade de serem princesas por um dia. De serem as mais belas do baile e de terem um príncipe a lutar contra dragões e contra bruxas. Daniela vive agora o seu momento de fantasia, para amanhã acordar feliz e enfrentar a frieza do mundo, que se pinta mais em tons de cinzento do que de prateado.

[Continua...]


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