O Dia em que a Morte 113 Amou (4/5)


[...continuação]

Já vira retratos d’Ela, mas ao vivo era outra coisa. A Morte tinha o rosto de uma mulher de cinquenta anos, com cabelos cinzentos lisos a descaírem pelos ombros, como se fossem rios de prata. Os olhos negros como o carvão, brilhavam como o petróleo. Apeteceu-me nadar dentro deles. A pele branca, como um floco de neve, destacava os seus lábios vermelhos como o sangue.

Ao contrário de todos nós, vestia uma túnica roxa. Eu não sabia que no Limiar podiam ver-se mais cores. A Senhora Morte sentou-se na sua cadeira, no seu pequeno e singelo trono, e com um aceno de cabeça instigou-me a falar. A prepotência que sentia reduziu-se até à extinção. As palavras enrolaram-se na língua, antes de eu conseguir dizer o que quer que fosse.

- Sinto um frio quente… Sinto-me bem por estar assim, mas sinto-me mal por não saber o que é… Sinto-me eufórico e triste… Sinto-me dividido em dois… Sinto-me incompleto. – As lágrimas irromperam nos meus olhos. Dois riozinhos de água incolor e insalubre abriram caminho até ao meu queixo, pingando a túnica preta.

- Morte 113 a culpa é minha.

Os directores sabiam que estavam a violar o protocolo, todavia não resistiram a olhar para trás. A Senhora Morte, a líder do Limiar, a primeira de todos, assumia as culpas pelos meus actos. O seu olhar maternal aconchegou-me. O meu coração deixou de bater tresloucadamente, recuperando a sua imperceptível normalidade. Senti a fugidia lucidez abeirar-se de mim.

- Morte 113, estás apaixonado. – Os directores baixaram a cabeça. Eles já deviam ter passado por experiências similares e, cegos e ignorantes, não tinham notado os meus sintomas.

- E a paixão tem cura Senhora Morte?

- Morte 113 a paixão não é uma doença. É o mais nobre dos sentimentos humanos. É aquilo que os aproxima dos Deuses. É pelo Amor e pela Paixão que Nós tentamos manter o Equilíbrio. – A Senhora Morte fez um sinal com os dedos, pedindo para que eu me pusesse de pé. Obedeci prontamente – A única coisa que cura a paixão é o tempo e a dor.

- Compreendo. – Baixei a cabeça. Para bom entendedor meia palavra basta e a Senhora Morte usara mais de dez palavras. Era claríssimo onde a conversa iria chegar.

- Morte 113 imagina que um sapateiro faz dois pares de sapatos, em momentos diferentes e com sentimentos diferentes. O primeiro par, pensa o sapateiro, servirá para o dia-a-dia, para trabalhar e correr as ruas. O segundo par servirá para as noites de festa, para o prazer e para a alegria. – A Senhora Morte tinha uma voz melódica, encantadora. Os humanos temiam-na por que não a conheciam. Deviam conhecê-la, nem que fosse por dois segundos apenas – Um grande incêndio pega fogo e o pobre sapateiro só tem tempo de salvar um par de sapatos. Qual deveria salvar?

- O primeiro par obviamente. – Respondi de imediato. A solução justa era por demais evidente.

- Porquê Morte 113?

- Por que com o segundo par de sapatos ele só conseguiria viver pequenos momentos de prazer. Salvar o segundo par seria egoísmo. O primeiro par é mais útil, logo é esse que ele tem que salvar.

- Utilidade. – A Senhora Morte continuava a olhar para mim. Os seus olhos feitos de petróleo e de noite penetravam nos meus – Sabes por que razão existimos?

- Para renovar a Vida. Existimos com a função de alimentar o ciclo da Vida. Se nada morresse, nada poderia nascer. É a Lei do Universo.

- Existimos com uma utilidade?

- Sim, com uma utilidade. É por isso que Samsara não poderá viver.

- Samsara é o segundo par de sapatos. – Conclui com tristeza. As forças do meu corpo desapareceram. Se não estivesse sentado teria caído.

A clareza da missão. Eu estava a ser egoísta, como acusara o sapateiro se ele salvasse o segundo par de sapatos. Eu era o sapateiro. Por egoísmo, por causa da paixão, eu queria salvar Samsara e condenar alguém, que era mais útil ao Equilíbrio. Percebi a estupidez do que tinha feito. A Senhora Morte ajeitou a sua túnica roxa, esperando que eu percebesse as suas palavras. O cobarde, o idiota, o burro era eu e não eles. Senti o meu rosto enrubescer.

Relembrei a passividade de Samsara. Ela conhecia o seu papel, o seu valor. Sabia que a Morte era inevitável e tinha aceitado esse facto. E eu, que só tinha que estalar os dedos, não conseguira perceber isso. Apeteceu-me fugir da Sala de Reuniões do Limiar, para me esconder em qualquer sítio. Não adiantava, fizesse o que fizesse Samsara morreria!

- Chama-se Helen Kinh, é norueguesa com ascendência britânica, tem 28 anos e vai ser mãe dentro de seis dias. É ela o primeiro par de sapatos Morte 113. – Chorei alto, mais alto do que desejara – A paixão que sentes por Samsara não pode evitar que cumpras a tua missão.

- Eu? – Regra geral quando falhamos uma missão ela é automaticamente passada a outro operacional, por uma questão de timings.

- Morte 113 terás até ao pôr-do-sol, do dia 9 de Janeiro, para concluir a missão que te demos. – Eu ia perguntar qualquer coisa sobre o Equilíbrio, mas a Senhora Morte antecipou-se e respondeu – O Equilíbrio não será afectado até ao pôr-do-sol. Vai Morte 113. Vai e ama!

A fenda que ligava o Limiar a Kochi, a cidade indiana, abriu-se atrás de mim. Os primeiros raios de sol iluminavam a cidade indiana. As matizes douradas da lagoa Vembanad foram a minha primeira visão. Os peixes não eram visíveis, debaixo da água esverdeada coberta por uma espuma branca, culpa da poluição industrial citadina. O céu azul sem nuvens saudou-me.

Acelerei o passo. Os humanos não me podiam ver, mas eu corria com a cabeça baixa, evitando o contacto ocular. As palavras de ordem da Senhora Morte martelavam na minha cabeça. Tentei descobrir que horas seriam. O ocaso solar ia ser às dezoito horas vinte e cinco minutos, disso tinha a certeza. Passei por um casal de namorados japoneses e espreitei para o relógio dele: eram oito horas e quarenta e seis minutos. Tinha menos de dez horas para estar com Samsara.

As ruas de Kochi pareciam maiores do que de noite. Não, as ruas de Kochi não tinham aumentado de tamanho. A minha ansiedade é que tornava os meus sentidos mais lentos. As redes de pesca saudaram-me, carregadas de peixes a debaterem-se pela vida. Poderia eu considerá-las minhas colegas? Elas também trabalhavam no negócio da Morte, para fortalecer a Vida.

A rua de Samsara apareceu por fim. Como uma amante barata abriu-se para mim e eu, sem cuidados e licenças, avancei por ela a dentro. Explorei as suas entranhas, até chegar à porta de madeira coberta com humidade.

Entrei! A sala iluminada parecia mais viva, do que de noite. Descobri uma carpete de Istambul no chão, comprada por algum antepassado muito antigo. A família de Samsara preservava a memória dentro das quatro paredes, onde todos habitavam.

A casa estava vazia. Podia sentir o cheiro a café fresco, feito pelo pai, ou pela mãe de Samsara. Em cima da mesa da cozinha dormitavam os restos mortais de um pão, esventrado por uma faca e coberto com uma pasta gordurosa, que devia ser manteiga contrafeita. Engelhei o rosto. A minha Samsara não comia estas porcarias. Ela era superior a tudo isto.

Cheguei ao quarto de Samsara, passavam já cinco minutos da nove da manhã. Ela tinha saído do banho há pouco. O cabelo molhado, colado ao pescoço, tornava-a ainda mais bela; como se isso fosse possível. Vestira um sari vermelho, decorado com medalhas prateadas. Por cima do sari caía um pedaço de tecido preto. Calçara umas sandálias castanhas. Sorriu ao sentir-me entrar no seu quarto.

- Ia comprar mais flores de jasmim. – Samsara sentou-se sobre a sua cama. Era óbvio que não dormira toda a noite – Mas já que chegaste, acho que não vou precisar. Vieste concluir a tua missão?

- Não Samsara. Quer dizer, sim Samsara, mas mais tarde. – O rosto dela esboçou dúvida. Ficava encantadora, com um ar verdadeiramente infantil. O meu coração voltou a fazer sentir-se.

Os dedos de Samsara entrelaçaram-se nos meus. Um raio de sol atrevido tocou os cabelos molhados da minha indiana. Sorri. Ela não podia ver o meu sorriso, mas podia sentir a minha felicidade. Um quadro improvável de prever. A Morte, um dos seus funcionários, apaixonada e abraçada a uma indiana. Aproveitei todos os segundos, inalando aquele odor a jasmim que perfumava a casa.

Saímos de mãos dadas. Na rua olhavam com estranheza para Samsara. Ela dava mãos ao vazio, ao que ninguém via. Humanos! Não é por não se verem, que as coisas não existem!

As ondas electromagnéticas não se vêem e, no entanto, vocês acreditam que elas existem. Quando vão deixar de ser dominados por um único sentido? Explorem os outros quatro. Lá estou eu… Armado em professor. Olhei para Samsara e dei-lhe um beijo terno na testa.

A rua onde vivia era mais bela, do que eu me apercebera até então. Pequenos canteiros de flores alegravam as janelas humildes, de quem sabia viver feliz com o pouco que os Deuses tinham destinado. Grandes lençóis esvoaçavam alegres, sacudindo os problemas para fora de casa. Vozes alegres e vibrantes, cheias de vida encheram os meus ouvidos e os de Samsara.

Ela conhecia todos os seus vizinhos. É assim em todo o Mundo. Quando as ruas são pequenas, escuras, húmidas e antigas cria-se um ambiente fantástico, quase mítico. Sentia o meu sangue a trepidar, como o borbulhar de uma taça de champanhe, servida no ano novo. Os fumos e os cheiros exóticos entraram nas minhas narinas, refastelando o meu cérebro faminto de odores.

Parámos em frente de uma senhora simpática, com 78 anos, que vendia flores no meio da rua. Consegui perceber que a Morte estava próxima dela. Claro, eu estava ao lado dela; mas não era eu. A vendedora morreria antes de chegar ao próximo Festival de Ganesh[1]. Samsara pediu à vendedora um ramo com sete jasmins. Encantada com a visita de Samsara, a vendedora deu-lhe oito jasmins, pelo preço dos sete.

O perfume dos jasmins lembrou-me o quarto de Samsara. Sem medo de parecer louca, aos olhos da vendedora, explicou-me tudo o que sabia sobre os jasmins. Não se sabia qual o país de origem da flor (Samsara defendia a sua Índia); conheciam-se mais de 200 espécies diferentes. Na sua maioria os jasmins floriam alvos, mas algumas das espécies floriam amarelas.

Na Magia, especialmente na China, o jasmim podia ser usado para atrair homens e amarrar os seus corações. Samsara corou, com as explicações alegres da vendedora. Eu agitei a cabeça em negação. Mesmo que seja verdade, eu não sou um homem. Não foi o jasmim que me aprisionou, foi a tua beleza Samsara. Na Tailândia, os jasmins brancos simbolizavam a Mãe. Não a Mãe Natureza, mas a Mãe.

[continua...]




[1] Festival Hinduísta que comemora o nascimento do Deus Ganesh, filho de Xiva e Parvati. O festival, que se realiza uma vez por ano, e dura 10 dias, é marcado tendo em conta o calendário Hindu, mas costuma realizar-se entre 20 de Agosto e 15 de Setembro


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