O Dia em que a Morte 113 Amou (3/5)

[...continuação]

- Posso fazer-te uma pergunta? – Pediu Samsara com a voz de uma criança.
- Podes.
- Tens nome?

Os humanos e as classificações. Tudo o que conhecem tem que estar etiquetado, classificado, nomeado, ou então não existe. Os humanos com a sua Ciência tentam perceber o Mundo, mas esquecem-se de o ouvir. Se parassem por um dia, se sentassem no chão, sob um céu estrelado e ouvissem os murmúrios do vento, as lamentações dos rios, as canções das flores. Um dia apenas!

- Tenho. Morte 113. – Respondi disfarçando o nervosismo na minha voz.
- Quantos são vocês? – Samsara queria saber mais. Não fugira, nem me batera como eu previra. Tenho que deixar de prever; sempre que o faço erro.
- Não tenho a certeza, mas somos mais de 20 000. Alguns são apenas invocados em épocas especiais, como as grandes guerras ou as revoluções.
- Estou a ver…

12 minutos! O tempo seguia o seu curso. O Limiar comunicava comigo, gritando para que concluísse a missão. Nunca antes comunicara com um humano, era a hipótese de os perceber melhor. Doze minutos serviam perfeitamente, até cinco minutos serviam. Isso mesmo! Quando faltarem cinco minutos concluo a missão; por enquanto quero conhecer Samsara. Explorar o seu mundo.

- Posso fazer-te um pedido? – Questionou Samsara fitando-me com os seus deslumbrantes olhos de ónix. Não tive como recusar – Deixas-me ver-te?
- Como assim?
- Eu sinto o teu corpo pelo cheiro e pelo som. Consigo perceber quais os teus contornos, mas para te ver preciso explorar-te com os meus dedos. É o mesmo que tirar uma fotografia. Posso?

Assenti. Os dez dedos de Samsara avançaram corajosamente, rompendo com as barreiras de trevas até atingirem a pele do meu rosto. O toque de Samsara era suave. Os dedinhos da jovem indiana percorreram o meu rosto, desvendando os meus segredos a Samsara. Tocou com cuidado os olhos, desceu até ao nariz, seguiu rumo aos meus lábios, onde se demorou um pouco mais.

As suas mãos deslizaram pelo meu pescoço. Estavam tão frias as mãos de Samsara e, mesmo assim, eu sentia-me a ferver por dentro. O meu peito, a minha barriga, as minhas pernas, sentiram o toque dos curiosos dedos de Samsara. Com os olhos fechados eu tentava perceber o que veria Samsara guiando-se pelo olfacto e pela audição. Quando morresse tudo desapareceria. Os sentidos, as limitações, os pedidos, as inquietações. Tudo!

- És bonito Morte 113. – Samsara pôs-se de pé num pulo.

Movia-se com tamanha destreza, que seria fácil tomá-la por uma humana com visão. O hábito tinha moldado a sua vida. O seu pequeno quarto não tinha segredos para si. Um dos jasmins brancos viajou da jarra até ao cabelo de Samsara. Com delicadeza a indiana de 21 anos tocou-me nas mãos. Estava preparada para morrer. Eu podia concluir a minha missão e seguir.

7 minutos! Mesmo a tempo de evitar explicações, por causa do atraso. Procurei o coração de Samsara. Falei com ele e expliquei o que iria acontecer. Sem resmungar o seu coração concordou comigo. Por vezes, os corações não colaboram connosco e somos forçados a agir com violência. Por vezes, somos forçados a causar dor. Hoje não ia ser uma dessas noites.

Ergui a mão e preparei-me para estalar os dedos. Samsara fechou os olhos. O seu rosto bonito perturbava-me. Nunca antes vira um ser tão belo. Nunca antes sentira o toque suave de uma humana. O meu coração (nem sabia que tinha um!) disparou. A racionalidade fugiu do meu corpo e eu, preguiçoso, não corri atrás dela. 6 minutos!

Não podia correr o risco de ter mais uma mancha na folha de serviços. Assim nunca mais subiria na carreira. Estou cansado de trabalhar no terreno; quero ficar nos gabinetes operacionais. Preparei-me para executar a missão. Combinei tudo de novo com o coração de Samsara. Chegámos facilmente a entendimento. Não havia como falhar. 5 minutos!

- Até amanhã Samsara.

Cobarde voltei para o Limiar através de uma fenda por mim criada. Arrisco-me a ser destacado para trabalho subalterno, ou então a desaparecer no vazio. Algo em mim não me deixou matar Samsara. O seu sorriso luminoso desceu sobre mim. Consegui sentir o toque dos seus dedos na minha pele, mesmo que ela tivesse ficado para trás.

Sei que sentirei as consequências dos meus actos, mais rápido do que desejaria. Todavia, uma parte de mim está feliz. Sinto-me imune a tudo. Uma parte de mim, não sei bem qual, regozija-se pela minha escolha. Fiz o que estava certo. Noutro ponto do mundo, um rosto que desconheço pagará pelo meu erro. O equilíbrio mundial exige este tipo de sacrifícios.

Queria chorar, condoído com o meu egoísmo, mas o que me apetece é gritar de felicidade. Sim fui egoísta, protegi apenas o meu interesse. E depois? Não tenho eu direito a ser feliz? Que morra alguém na Noruega, ou nas Ilhas Salomão, para preservar a minha bela Samsara.

Sentei-me na minha cama. O relógio da parede fitava-me cruelmente. Restavam ainda três minutos, até ao término do tempo. Os papéis da missão continuavam em cima da mesa, por arquivar. Pelo meu incumprimento, alguém dos arquivos tinha descansado um pouco. Tínhamos saído todos a ganhar, menos a vítima do Equilíbrio. A vítima que me desculpasse. 2 minutos!

- Morte 113 à Sala de Reuniões. Morte 113 à Sala de Reuniões.

Ainda faltavam dois minutos para o término da missão. O som do meu nome pronunciado pelos corredores do Limiar soava estranho. Uma voz electrónica, fria e impessoal exigia a minha presença na Sala de Reuniões. A direcção em peso deveria estar presente. Ajeitei a túnica negra e, sem medo, mas também sem coragem, segui em frente.

Os corredores frios e descoloridos do Limiar desagradaram-me, pela primeira vez. Preto, branco e uma infindável gama de cinzentos era tudo o que via. Não sentia qualquer cheiro, não sentia temperatura, não sentia a lua, nem mesmo o sol. No Limiar não sentimos nada. Samsara tinha-me dado a conhecer o toque da pele humana. Tinha-me dado a conhecer a tremura nervosa dos dedos humanos.

O rosto luminoso da indiana seguia a minha caminhada. À medida que me aproximava, da Sala de Reuniões, os chamamentos tornaram-se mais insistentes, mas igualmente impessoais e electrónicos. Samsara tinha-me dado a conhecer o meu corpo. Eu tinha que voltar para descobrir mais.

A direcção do Limiar sentara-se em seis das sete cadeiras colocadas num palanque. Em frente às cadeiras pretas, dois degraus abaixo, estava uma cadeira cinzenta na qual me deveria sentar. Ninguém faltara. Dois dos directores do Controlo Operacional Inferior, dois dos directores do Controlo Operacional Intermédio e os dois únicos directores do Controlo Operacional Superior fitavam-me.

Vestiam túnicas negras, iguais à minha. Distinguiam-se na hierarquia do Limiar pelos anéis de prata. Não tinham rostos cadavéricos, não eram demónios mitológicos e não eram vampiros, ou magos experientes (lamento frustrar as expectativas!). Eram, como eu, Seres da Morte. Empregados da Morte. A Senhora Morte construíra o Limiar para desempenhar as tarefas que a Dona Eternidade lhe tinha confiado.

- Porque a Morte é necessária…
- …para que a Vida exista!

O juramento que todos fazíamos, a partir do momento em que entrávamos para as fileiras do Limiar. Os candelabros iluminavam a sala, pejada de quadros pintados a carvão. A sétima cadeira, colocada num patamar superior, a todas as outras, era d’Ela. Se ela aparecesse, sentar-se-ia ali. Não que isso fosse acontecer, pela transgressão de um mero operacional Intermédio. Ela devia ter tanto em que pensar.

- Morte 113 és acusado de ter deixado viva a humana Samsara.

A acusação era lida por um dos directores do Controlo Operacional Inferior. Por uma questão de protocolo eles não me podiam colocar questões, uma vez que eu estava num nível de acção superior. Só os directores do Controlo Operacional Intermédio e do Controlo Operacional Superior poderiam fazer perguntas a um operacional de nível intermédio.

- Alguma coisa a dizer em tua defesa Morte 113? – Perguntou um director do Controlo Operacional Intermédio que eu conhecia bem: o Morte 46.
- Nada. Eu não falhei.
- Não é isso que parece Morte 113!
- Eu não quis realizar a missão. É diferente de falhar.

Não estava a ser corajoso, mas sim arrogante. A força que Samsara carregava consigo invadira as minhas células, ou o que quer que fosse que me constitui. Eu ouvira os humanos dizer, que há sempre uma primeira vez para tudo. Pois bem, pela primeira vez eu estava a ser arrogante. Também tenho direito à arrogância, ao egoísmo, e a mais alguns sentimentos para os quais não tenho classificação.

- E porque não quiseste realizar a missão Morte 113? – Inquiriu o Morte 46 intrigado com a minha resposta. Conseguia ler no seu rosto espanto e incredulidade pelo que me ouvira dizer.
- Porque não. Samsara não merece morrer.
- E quem és tu, Morte 113, para decidir tal coisa? – Inquiriu um dos dois directores do Controlo Operacional Superior.
- E você? Quem é você para perceber as minhas razões?

Falava com a minha língua, usando a minha voz, mas mesmo assim sem controlo sobre mim. Os sentimentos que experimentara com Samsara tinham-me alterado de alguma maneira. O director fitou-me com temor. Não devia estar habituado a insubordinações. Paciência! Eu não vou silenciar-me, quando querem matar a minha doce Samsara. Minha? Desde quando Samsara é minha? O que raio estou eu a pensar?

- Morte 113 diz-me o que sentes.

Uma voz nova entrou na sala. O meu olhar correu as seis cadeiras, porém todos os rostos mantinham-se passivos, com os lábios cerrados. Subi um andar com o olhar. A Morte estava ali. A primeira. A original. A Senhora Morte, que os humanos temiam, entrara na Sala de Reuniões e isso, por mais estranho que pareça, acalmou-me.

[continua...]


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