O Dia em que a Morte 113 Amou (2/5)

[...continuação]

Diante de mim surgiu uma pequena sala. Senti-me numa casa de bonecas, pelo tamanho reduzido de tudo. Um pequeno sofá verde, com duas manchas de bolor, abrigava duas pequenas almofadas amarelas puídas e cheias de pó. Um cadeirão de verga, com uma perna partida, jazia há já alguns anos. Em cima de uma mesa com um vidro baço, de tão coberto de pó, estavam três molduras de prata falsificada com os rostos dos moradores daquela casa.

A pequenita sorridente, com um vestido de cetim vermelho e uma fita de seda azul na cabeça, devia ser a Samsara há uns anos atrás. Na parede podia ver pendurados alguns retratos das divindades indianas. Se os adoradores do Deus Xiva o conhecessem pessoalmente nunca mais o tratariam por Deusa. Os indianos conseguiram conservar o respeito pelos Deuses e pelo místico, sem negligenciar a modernidade.

Os do Ocidente nunca tinham sido professores, mas alunos arrogantes. Mesmo durante a colonização, os do Ocidente não tinham passado de alunos… Pode ser que algum dia se apercebam disso. Olhei para mim e tive vontade de me rir. Era a segunda vez, no dia, que parava imerso em dúvidas e inquietações sem sentido. Com frieza e profissionalismo concentrei-me na minha missão e segui até ao quarto.

Um pequeno foco de luz vinha do quarto de Samsara. Conseguia perceber que a jovem adulta estava sozinha em casa. O quarto de Samsara parecia pensado para acomodar um anão. A cama tinha-se tornado pequena aos catorze anos, mas não tinha sido trocada. A mesinha de cabeceira combinava, em escala e em estilo, com a cama de madeira. Duas das gavetas abrigavam pequenas colónias de térmitas, que gulosamente desfaziam o móvel.

Um armário de duas portas, com um espelho rachado em três, protegia as roupas de Samsara. No cimo do armário empilhavam-se algumas caixas, onde se guardavam os objectos que refrescavam a memória da família. Reparei que na mesinha de cabeceira dormitavam, dentro de uma jarra de vidro, três pés de jasmim brancos como a superfície lunar, em noites de lua cheia.

A luz do quarto provinha de três velas que ardiam num castiçal feito para cinco. A pobreza rondava aquela casa. Samsara lia, dedilhando as palavras que o seu cérebro absorvia esfomeado. Devia ter dificuldades em ler, por isso usava os dedos. Olhei para ela com a nitidez que foi possível, pela primeira vez.

Tinha o rosto redondo. A pele parecia feita de canela e o cabelo uma cascata de chocolate negro ondulante. Os seus olhos eram brilhantes como o ónix e os lábios carnudos tinham o tom das rosas frescas colhidas pela manhã. O corpo de Samsara revelava a sua idade. As mãos finas e os dedos esbeltos terminavam num conjunto de dez unhas pintadas de vermelho.

O Tempo corre contra mim. O Limiar começa a lembrar-me que tenho que regressar, que tenho uma missão para cumprir, que alguém arquivará depois. Consultei mentalmente o meu relógio. Pouco mais de vinte e cinco minutos para concluir com sucesso a missão e regressar ao Limiar. Aposto que alguém se prepara já, para ir até aos arquivos cumprir a sua missão.

- Vais ficar em pé toda a noite? – Perguntou Samsara, que devia estar a ler alto algum trecho mais emocionante do livro. Por momentos, tenho que confessar, apeteceu-me responder, mesmo que ela não me visse – Não te vou convidar duas vezes. Se quiseres ficar de pé, por mim tudo bem.

Samsara não podia estar a falar comigo. Os humanos não nos vêem. A maioria dos humanos nem em nós pensa, acreditando que isso nos afasta de cumprir a missão. A rapariga já não dedilhava as palavras do seu livro. Com um pequeno sorriso talhado no seu bonito rosto fitava a escuridão do quarto.

- Será que não percebes o que digo? – Ela fala comigo. Não é possível que ela fale comigo… Senti o meu rosto esboçar uma careta. Movi-me no soalho fazendo ranger as tábuas de madeira – Afinal sempre me percebes; não queres é responder.

Avancei três passos. As minhas pernas obedeciam aos meus pensamentos, mas não à minha vontade. Samsara pousou o livro na cama, confirmando o que eu pensava ser impossível. Ela falava comigo. Lembro-me de alguns relatos de experiências iguais durante a II Guerra Mundial, mas desde Agosto de 1945 que não havia registo de qualquer tipo de ocorrência.

- És tímido. Não, não é isso. – Samsara inalou o perfume dos jasmins com uma delicadeza invulgar. Era como se o cheiro das flores brancas fosse feito de cristal e uma inspiração dada com mais violência poderia estilhaçá-lo – Tu não estás tímido. Estás é assustado.

- Sim é isso. – Disse eu, sabendo que ela não me ouviria. Todos os relatos de humanos que nos tinham visto eram precisos; os humanos limitavam-se a ver-nos. Era lhes impossível ouvir a nossa voz.

Samsara ergueu o seu corpo de sereia da cama. O ranger da madeira despertou os espíritos da casa. De pé, a indiana de 21 anos, era quase da minha altura. Uma das velas extinguiu-se antes do pavio chegar ao fim. A janela reflectia no chão a luz lunar, recortando em sombras o caixilho de madeira. O sari laranja flamejante iluminava o espaço coberto pela penumbra.

- Sempre falas.

A jovem passou por mim com um sorriso doce. Ela conseguia ouvir-me? Seria por isso que os observadores (desculpem, os fotógrafos) não a tinham retratado bem? Ela era uma Especial. Segui com os meus olhos os seus gestos. Em bicos dos pés fez por alcançar o cimo do armário, retirando uma das muitas caixas. Magicamente, nenhuma das outras caixas se mexeu. A pilha não desabou ruidosamente, como eu imaginara.

Sem dar importância à minha presença, depositou a caixa em cima da cama. A humanidade inteira pagaria tudo para me poder ver; para poder negociar comigo, um adiamento da minha missão. Todavia Samsara ignorava-me alegremente.

Das entranhas da caixa saíram três velas brancas que colocou no castiçal. Abriu com esforço a gaveta superior da mesinha de cabeceira, que abrigava uma das colónias de térmitas, para tirar uma caixa de fósforos. Com as cinco velas acesas, parte da divisão saiu das trevas.

O rosto de Samsara tornava-se mais bonito quanto mais olhava para ele. Devia ser um encantamento indiano que eu desconhecia por completo. Os pensamentos tornaram-se nublados e a lucidez da missão esbateu-se serenamente. Passaram cinco minutos sem que eu me mexesse.

Quem passasse na rua, e olhasse para o quarto, veria Samsara a fitar o escuro, quiçá embrenhada nos seus sonhos. Mas na realidade Samsara fitava-me. Os seus olhos de ónix intimidaram-me. Nunca antes senti medo e prazer ao mesmo tempo. As pernas perderam vigor e, por milésimos de segundo, imaginei o impossível. Sacudi a cabeça para acordar, para fugir do seu olhar penetrante e poder concluir a missão.

- Esperava por ti mais tarde. – Samsara convidava-me a sentar com o seu sorriso.

Dominado pela beleza da indiana cedi. Vi o meu corpo deslocar-se até à beira da cama e, debaixo de um festival de rangidos, sentei-me ao lado dela. Nunca antes eu tinha interagido com quem quer que fosse. Uma paleta de sensações novas corria o meu corpo. Consultei mentalmente o Tempo que me restava: 18 minutos e a decrescer!

- Então vai ser assim. Entras silenciosamente, não te apresentas, cumpres o que tens a fazer e sais de mansinho. – Samsara colocou as mãos no quadril encenando uma irritação que não sentia.

Da Índia à Argentina, passando pela Austrália, ou mesmo pela Polónia, não há uma só mulher no mundo que não faça este gesto, pelo menos uma vez ao dia. Pode dizer-se que é o gesto feminino universal para a cólera.

Aposto que todos os homens do planeta conhecem o real sentido dos braços arqueados, com as mãos a acariciarem o quadril. Aposto que há homens que têm mais medo desse gesto, do que do bicho papão ou mesmo do Abominável Homem das Neves.

- Tu podes ouvir-me? – Questionei baixinho, entrando no jogo de Samsara.

- Até te consigo ouvir, mas tens que falar mais alto. – Samsara mantinha o dócil sorriso na face – Não te preocupes que não acordas ninguém.

Assenti com um aceno. Eu sabia que não acordaria ninguém. Aliás se entrassem pelo quarto de Samsara, neste momento, pensariam que a jovem endoidecera, pois apenas a veriam a falar sozinha. Supostamente eu seria invisível e inaudível perante os humanos, contudo Samsara parecia ver-me e ouvir-me perfeitamente. Alguém do Gabinete Operacional Superior ou mesmo do Estado-Maior devia-me uma boa explicação quando eu regressasse.

- Samsara tu estás a ver-me? – Antes de exigir explicações, tinha que confirmar que a indiana me via e ouvia como parecia fazer. Se ela era uma Especial então teria direito a tratamento especial.

- Quantas vezes terei que provar que te vejo e ouço perfeitamente. Quer dizer… – Samsara baixou a cabeça e em murmúrio concluiu a sua resposta – Eu vejo-te à minha maneira.

A minha mão procurou o queixo de Samsara, debaixo da cascata de chocolate que era o seu cabelo. Ergui o seu rosto entristecido, espantado com a descoberta que fazia. Samsara era cega. Ela não me vira através dos seus olhos. De alguma forma sentira a minha presença.

Lembro-me de termos falado disso durante a formação. Os humanos invisuais apuravam os outros sentidos como defesa. Alguns, puros de alma e coração, chegavam a desenvolver dons como a telecinésia, a telepatia ou percepções extra-sensoriais. Samsara devia fazer parte deste último grupo. Ela sabia que eu tinha vindo. Sabia qual a minha missão. E mesmo assim convidara a sentar-me ao seu lado.

Eu que vinha matá-la.

- Samsara tu sabes quem eu sou? – A jovem indiana acenou positivamente com a nuca – E sabes a missão que me trouxe? – Um novo aceno positivo – E isso não te assusta?

- Não. – Samsara sorria de novo. A tristeza que sentira desaparecia fundindo-se com o odor a jasmim que reinava no pequeno quarto – A morte é apenas mais um passo. Não encaro a morte como um fim, mas como um novo princípio. Por que haveria de ter medo? Isso não mudará nada. Morrerei na mesma.

CORAGEM! A palavra coragem ecoou na minha cabeça. Eu sempre me considerei corajoso pela missão que carregava. Percebia agora quão cobarde eu era. Corajosa era Samsara, que enfrentava a Morte com um sorriso nos lábios. Não chorava, não suplicava, não pedinchava, não fugia. Esperava sentada, sorrindo pacificamente, convidando-me a sentar junto dela.

14 minutos! Relembrei a ficha da minha missão: ela deveria morrer de ataque cardíaco fulminante, uma morte indolor. Num estalar de dedos tudo terminaria, mas eu não conseguia comandar a minha mão. Consegui sentir três casas abaixo um operacional do Limiar concluir a missão e regressar pela fenda. Por que me demorava? O que se passaria comigo?

[continua...]

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