Porque (para mim!) temos que ser Charlie...

Confesso que ontem, quando o Jornal da SIC encerrou, e o pivot disse o "e hoje Somos Todos Charlie" fiquei em tensão. Depois de ouvir, ver e ler notícias (todo o dia) sobre os actos de barbárie que abalaram Paris, depois de ouvir as palavras do pivot seguidas de um silêncio ensurdecedor seguiram-se lágrimas.

Porque se respondem com tiros a desenhos num papel? É verdade que os desenhos do Charlie Hebdo sempre incomodaram muita gente... Mas essa gente soube protestar, por vezes veemente, com urbanidade. Pode dizer-se que por vezes o Charlie Hebdo abusava, que usava pouco do "bom senso", que usava pouco de contenção... Mas a sátira é isso mesmo!

Olhemos o diccionário. Procure-se essa palavra manchada de sangue, por quem olha sem saber ver. Encontre-se o vocábulo! Leia-se com calma. Sátira: "composição livre e irónica contra instituições, costumes e ideias de época; composição que ridiculariza os vícios e as imperfeições; ironia, zombaria".

Era isto que o Charlie Hebdo fazia. Sátira! Claro que era incómodo, porque criticava e critica não só o que somos, mas o porque somos e o como somos. E quem não sabe olhar para si, rindo-se primeiro e reflectindo depois, acaba por olhar sem ver com os olhos turvos de um ódio fátuo mas assassino. Porque os cartoons falam para lá dos traços... Mas para isso é preciso perceber o que é a sátira.

As fileiras de gentinha politicamente correcta vieram condenar o acto bárbaro e o cartoon, juntando no mesmo saco traços no papel e tiros no corpo. Não tenho outra maneira de dizer isto: senti asco! O Charlie Hebdo critica tudo; cartooniza tudo; põe o dedo na ferida em tudo e a maioria desse tudo esperneia, grita, critica, vocifereia, ameaça mas deixa o Charlie ser Charlie.

E depois uma minoria de indíviduos vê num desenho crítico uma ofensa capital, que não se pode apagar com borracha mas apenas lavar com sangue. E os tiros passam a valer, porque existe um ente Divino que precisa de sangue para aplacar o seu desagrado... Porque um acto de expressão criativa passa a ser visto como um pecado mortal.

E o problema do ataque ao Charlie Hebdo não é o agora, mas o que se segue. Para além destes actos permitirem aos partidos nacionalistas-extremistas reforçar a sua retórica anti-emigração; para além destes actos reforçarem a imagem negativa do Islão no Ocidente; para além destes actos o perigo é o da instalação e aprofundamento de auto-censuras.

Fica o medo de desenhar algo, porque alguém poderá não perceber e, ao invés de se recorrer às cartas de indignação, aos comentários de repulsa e aos processos judiciais, recorrer às armas para replicar o que se faz com os lápis. E a auto-censura é mais perigosa do que a censura institucional. E a auto-censura, que já existe, é mais corrosiva do que todos os "lápis azuis".

O Fidalgo não ignora que a Europa tem que fazer um exame profundo a si mesma; que existem ódios latentes de várias minorias marginalizadas pelas maiorias europeias muitas vezes pedantes e arrogantes. O Fidalgo não ignora as sequelas da violência estrutural e simbólica do colonialismo europeu. O Fidalgo não ignora que a Europa actua por vezes de modo impositivo no seu quadro de valores. Mas dois erros não fazem um acto certo...

Porque temos que ser Charlie, porque se não formos Charlie aquilo que nos parece a defesa dos direitos das minorias acabará por se plasmar no amordaçar dos direitos de todos (maiorias e minorias). Se não formos Charlie o direito ao comentário diferente, crítico acabará por se diluir num discurso vazio e acrítico. Se não formos Charlie hoje, não teremos voz amanhã.


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