Revisionismos, egos e um Sultão sem Império

Recep Tayyip Erdoğan, Presidente da Turquia desde 28 de Agosto de 2014, tomou o gosto pelo revisionismo histórico e pelo mediatismo "escandaloso-ó-populista". A primeira estocada foi a declaração de que teriam sido os navegadores muçulmanos a encontrar a América primeiro, em 1178, e não Colombo em 1492.

Sendo quase certo que Colombo não foi, de facto, o primeiro a pisar a América, a maioria dos indícios apontam para para os Vikings (oriundos da Islândia), que tanto quanto sabemos passaram do paganismo politeísta ao Cristianismo monoteísta. Existem até indícios do estabelecimento de uma colónia viking, no Canadá, no começo do século XI que terá sido abandonada antes do final desse mesmo século.

A teoria do Presidente sustenta-se nos escritos do historiador Youssef Mroueh, que em 1996 publicou um artigo onde cita uma passagem do diário de Colombo como prova de que os muçulmanos teriam chegado à América primeira. A maioria dos historiados islâmicos não segue este teoria. E curiosamente, não existem vestígios de qualquer construção islâmica pré-Colombo no continente americano. Mas sobre isso, o Presidente não quis falar...

As críticas ao Presidente da Turquia, por vários académicos turcos e por ainda mais académicos, analistas e políticos internacionais, não se fizeram esperar. Como resposta, Erdoğan falou em crises de ego e decidiu apontar o dedo a todos os que não o seguem. Numa retórica meio violenta, alegou que "os estrangeiros dentro de nós" (isto é, os turcos pró-Ocidente) e os "demais estrangeiros" (isto é estrangeiros, como o Fidalgo, a laborar na Turquia) não gostam da Turquia.

Foi mais longe e chegou mesmo a dizer que "eles não querem saber se as nossas crianças morrem. Eles apenas se preocupam com dinheiro", alinhando na visão, partilhada pelo seu recente novo amigo Vladimir Putin, de um Ocidente decadente, sem valores, sem moral e sem quaisquer interesses para além do dinheiro. A ideia é simples, a Turquia (baluarte da moralidade e dos bons-costumes) está a ser penalizada pelo amoralismo Ocidental.

O Presidente não se contentou e revelou, dias mais tarde, que os norte-americanos nunca tinham pisado a lua, que tudo tinha sido encenado, alinhando com os seguidores das teorias da conspiração que negam a chegada à lua de Armstrong. O Presidente, uma vez mais, foi mais longe e falou numa "pasta negra com os segredos do mundo" que todos os Presidentes e Primeiros-Ministros recebem após as eleições.

E o Fidalgo questionou-se: então e os monarcas não recebem a dita pasta? E os Presidentes que chegam ao poder por via do golpe de estado, como será que se processa? O revisionismo histórico, de per si, tem pouco de novo; Portugal andou anos a tentar querer "vender" uma narrativa de auto-glorificação, em muitos casos, exacerbada. Mas o revisionismo histórico, temperado com teorias da conspiração, e com uma retórica ultranacionalista é perigoso...

O Presidente Erdoğan parece ter assumido que é sua missão aprofundar o plano começado por Kemal Atatürk de turquicização da Turquia. Após o colapso do Império Otomano, Atatürk culpou o multiculturalismo pela queda do Império e pelo "esmagamento dos turcos" perante as forças estrangeiras. O resultado foi a construção de uma narrativa auto-centrada que valoriza apenas e só as vitórias conseguidas por turcos, relativizando tudo o resto.

Este desejo de glorificação da nação Turca como centro do mundo explica os comentários do Presidente Erdoğan, de que os alunos turcos conhecem demasiados autores estrangeiros e de menos autores turcos e muçulmanos. A ideia é a Turquia, que em regra geral desconhece tanto o que se passa no mundo, se fechar ainda mais sobre si mesma. A ideia não está condenada ao fracasso, mas condenará a Turquia a fracassar...

E depois de tudo isto, anteontem, o Presidente Erdoğan (que se comporta cada vez mais como um mau Sultão sem império) achou por bem clarificar que "a vida da Turquia decide-se aqui, no palácio", referindo-se ao novo e faraónico palácio presidencial com mais de 1000 quartos e envolto em inúmeras polémicas.

Erdoğan, com poucas palavas, colocou o Primeiro-Ministro no seu lugar de subserviência e enfatizou a sua missão de decisor central da política da Turquia. Talvez esteja para breve a adopção de um título sonante, como o fez o anterior Presidente do Turquemenistão quando se auto-entitulou de Turkmenbashi (pai dos turquemenos).

O Primeiro-Ministro acatou a ordem. E ontem decidiu alinhar com o Presidente, nas "novas" teorias sociais. Se o Presidente diz que a igualdade de género é anti-natural, porque as mulheres são frágeis; o Primeiro-Ministro acrescenta que as taxas de suicídio nos países Nórdicos (economias avançadas) se devem à igualdade de género... Os estudos apontam como razão mais provável questões climatéricas, mas o Presidente e o Primeiro-Ministro da Turquia sabem mais do que os estudos!

É interessante notar que esta necessidade de afirmação de poder e a necessidade de construir grande para "o mundo ver" revelam um homem complexado consigo mesmo e que, por isso, ataca os outros que o atacam. A Turquia que não votou em Erdoğan temia que a sua eleição levasse à emergência de um neo-convervadorismo pan-turco-islâmico e, até ver, parece confirmar os seus temores.

É intrigante constatar que o líder do partido (AKP) que chegou ao poder, após um período marcado por instabilidade governativa e golpes de estado, prometendo modernidade, progresso e uma viragem pró-Ocidente, se vire agora contra o Ocidente. É indicativo disso mesmo que a primeira visita de Erdoğan após a eleição tenha sido ao Azerbaijão e que o seu mais recente aliado seja a Rússia.

Talvez Erdoğan tenha percebido que a luta contra o Estado Islâmico no Iraque e na Síria está a trazer a agenda curda de novo para a ordem do dia. Ou talvez tenha percebido que a questão do Chipre terá que ser resolvida o quanto antes, sob prejuízo de qualquer futura decisão excluir totalmente os intentos de Ankara. Ou talvez atravesse apenas uma crise de meia-idade, que ameaça arrastar o país para uma crise de legitimade...

Curiosamente, até agora, a União Europeia manteve-se silenciosa sobre as diatribes do Presidente com tiques de Sultão. A União Europeia, sempre tão vocal com o Presidente da Sérvia e tão atenta aos desenvolvimentos na Rússia e na Bielorrússia, achou por bem silenciar-se... Como de resto também costuma fazer com o Azerbaijão e até com a Geórgia. Parece que às "mulheres da UE" basta parecer querer ser pró-UE...


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