Memórias de uma Garrafa de Champanhe (3/3)

[continuação]

Uma voz forte salvou-me. O Sr. Marquês, soube-o depois, interveio a tempo. O meu corpo regressou à caminha de madeira e fui colocada, uma vez mais, ao lado do vinho do Porto. Respirei de alívio! O vinho do Porto saudou-me pela coragem, pelo modo elegante como eu me entregara ao fatal destino.

Corei, ou borbulhei, pensando que fora o medo e não a elegância a impedir qualquer reacção. Os whiskies silenciaram a cacofonia de piadas sem gosto. Os gins sussurraram baixinho algo imperceptível, mas que seria algo maledicente sobre mim… Só podia, vindo daquele grupinho de bebidas transparentes com vontades opacas!

O vinho do Porto e eu aproximámo-nos após o incidente. Aos poucos ele partilhou comigo as estórias da sua origem. De como era lindo o Douro de Portugal. Das vinhas sulcadas na terra; dos beijos do sol; dos rios que dançavam lá ao fundo; das vozes alegres das mulheres na vindima; das esperanças que punham em si.

Aos poucos entendi como o vinho do Porto espelhava a alma de um povo alegre, batalhador e sem medo de cantar perante adversidades. Tenho a dizer que o orgulho em ser francesa se esbateu.

Vários séculos de História tinham-nos dado presunção, pompa, um orgulho fátuo e pouco mais; enquanto este povo, os criadores deste vinho do Porto, tinham-se realizado mundo fora, tinham-se cumprido enquanto gente e poderiam fazê-lo de novo. Era apenas uma questão de quererem! Uma questão de acordarem de novo…

No meio das palavras do vinho do Porto fui-me acomodando e, pela primeira vez, senti-me em casa. O conforto de me sentir em casa durou pouco tempo. Não tardou a que uma segunda tentativa furtiva ameaçasse a minha placidez existencial. Um sobrinho do Marquês, zangado com o tio, tentou roubar-me para me levar com ele. Fui encapuçada num grosseiro saco de serapilheira.

Tentei reagir mas o medo, e o facto de estar na mesma prisão que o vinho do Porto, silenciou-me. A passos largos fomos percorrendo as divisões e os meus planos de glória foram-se esbatendo, como as cores de uma tela esquecida no jardim e regada pelos aguaceiros da manhã.

Uma vez mais o previdente Marquês salvou-me de um desfecho impróprio. O saco foi aberto e enquanto gritos e palavras menos simpáticas (bem ao gosto dos whiskies) preenchiam a casa senhorial, eu e o vinho do Porto voltámos para o nosso armário.

Nessa mesma noite um dos gins foi levado e nunca mais voltou. Os seus “companheiros” zombaram do seu azar, ao invés de mostrarem qualquer sentimento de mágoa pela sua partida. Aprendi com o meu querido vinho do Porto, que este povo que me acolheu diz que “há terceira é de vez” e no meu caso comprovou-se.

O terceiro a rondar o armário onde as bebidas repousavam foi o Marquês em pessoa. Retirou-me, quando trazia na mão duas belíssimas floutes vindas de Flandres. Não tardou a que música enchesse o salão senhorial e vozes simpáticas enchessem aquele espaço.

Era o meu momento de glória; momento de poder brilhar. Avistei numa mesa mais ao fundo o vinho do Porto, rodeado de admiradores que lhe prestavam o devido tributo. Lembrei-me do que aprendera nas caves francesas e aprimorei o dourado da minha bebida.

Relembro que era final de tarde. As conversas simpáticas, que se formavam nos lábios daquela gente bem vestida e sempre sorridente, preencheram-me. Estava pronta para ser útil; porta para sensações requintadas e que apenas a memória gustativa e o cérebro poderiam reter.

Com delicadeza a rolha deslizou e um “pop!” anunciou-me ao mundo. De começo, apenas duas pessoas me experimentaram, mas vários clarões (semelhantes aos trovões em noite de tempestade) registaram o momento.

Escorri suave para as elegantes floutes da Flandres e depois para os delicados lábios da Marquesa e os fortes, mas suaves, lábios do Marquês. Por um segundo senti-me completa; única; inteira; existente.

E logo depois tudo se estilhaçou, com a velocidade de uma gazela em fuga na savana. Metade do meu precioso líquido foi dividido em impróprios copos de whisky por uma vintena de convidados. A festa, tal como o sol, sumiu…

Vieram empregadas de limpeza; conversas sobre as conversas; agitação no salão como se um ciclone se tivesse formado ali. O vinho do Porto foi posto num saco negro e deixei de o ver. Eu fui agarrada, sem jeito e sem graça, pelos dedos gordurosos de um mordomo.

As floutes seguiram comigo o mesmo caminho. Num instante estava no salão dos Marqueses e no momento seguinte, qual eclipse, fui fechada no sótão. Fui tornada em algo dispensável. A imperatriz virou nada; grão de pó nas memórias dos meus senhores; partícula infinitesimal das suas vidas.

E aqui estou… No meio de outros tantos objectos, envolta numa camada de pó, na companhia pouco excitante das floutes da Flandres… Aqui estou sozinha com as minhas memórias, enquanto me apago de cada vez que o relógio de pêndulo soa… Aqui estou…

FIM

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