Memórias de uma Garrafa de Champanhe (2/3)

[continuação]

Fomos todas encaminhadas para os nossos destinos exóticos. A primeira de nós a deixar a loja foi encaminhada para casa dos Duques de Milão. Embora os automóveis fizessem furor entre os nobres da Europa, lembro-me que foi uma pequena carruagem que balançava desajeitadamente a vir reclamar o prémio dourado.

O som das rodas de madeira a embaterem nos ladrilhos é a última memória que tenho. E dois dias depois chegou a vez dos Marqueses de Lille receberem o glamouroso néctar nascido na escuridão de uma adega francesa.

Três das imperatrizes remanescentes partiram umas semanas depois para a corte austríaca, mas só uma chegou ao destino. Ouvi rumores de que no caminho uma das borboletas de ouro líquido borbulhante seguira para o Império Alemão, para casa de um príncipe qualquer da Saxónia.

A outra imperatriz partilhou a sua magia pelas ruas de Budapeste, desviada pelas mãos de um serviçal ganancioso ávido de sentir a textura refinada do melhor champanhe. A rudeza das suas pupilas, porém, levou a que cuspisse a primeira golada e oferecesse cada gota de luxo aos seus cães acossados por um surto de carraças.

A terceira chegou em pompa à corte austríaca e deleitou-se com os prazeres da corte, até ser aberta num banquete de embaixadores. A sua existência provada pelos bigodes farfalhudos de dois austríacos, um russo, um alemão, um romeno e um turco que em amena cavaqueira falaram do mundo como se fosse um recreio.

A sexta garrafa não chegou a sair de Paris. Acompanhou duas aventuras do seu senhor e morreu na terceira, por entre o suor de braços entrelaçados e gemidos que prometiam um amor eterno que durou seis dias e algumas horas.

A sétima das irmãs viajou durante meses até chegar à corte russa, como presente de um nobre georgiano para o czar Nicolau II. Eu fui a oitava a ser adoptada. Só espero que as restantes tenham tido tanta ou mais sorte do que eu, pois perdi-lhes o rasto. Tive como destino Portugal.

A casa senhorial dos Marqueses de Abrantes, com moradia em Lisboa (vá-se lá perceber estes humanos!), esperava por mim. Uma soirée qualquer seria o meu destino, mas por culpa do destino e da incompetência de um dos serviçais cheguei atrasada. Fui arrumada com cuidado ao lado da cristaleira, junto a uma série de whiskies, gins e uma meia garrafa de brandy.

Não fui retirada da minha cama de madeira, mas abriram-me o vidro. Melhor seria que o tivessem deixado ficar. As conversas dos gins até que eram interessantes de se ouvir, sempre com um toque de urbanidade que me aprazia. O problema, o inconveniente diria eu, eram as tiradas nada cavalheirescas dos whiskies, com comentários mais próprios de uma taberna quinhentista, do que de uma casa nobre em pleno século XX.

Confesso ao leitor que fiquei espantada. Nunca imaginara que uma bebida bela, de tez dourada, armazenada num elegante vestido de vidro muito trabalhado, pudesse ser tão rude. Se entrava uma donzela no salão onde estávamos choviam piropos e impropérios que eu era obrigada a ignorar. 

Interroguei-me demoradamente se eles (os animalescos whiskies) estariam embriagados na sua própria essência, mas logo descobri que assim não era. Fazia parte da sua genética aquele palavreado grosseiro, rude, quase pré-histórico. Não eram mais do que homenzinhos das cavernas envoltos numa capelina de ouro e com sapatos de Milão.

Os gins mostraram-se corteses no trato. Todas as suas frases um puzzle bem construído de sentidos, que a tempo descobri ser um labirinto. Não era civilidade o que neles via, mas apenas um logro de mentiras e enganos. Procuravam mostrar o outro como ilógico, inferior, incapaz.

Os gins provaram, a seu tempo, ser uma bebida sem alma; copiando o comportamento de quem os bebia. Fazendo joguetes sociais a toda a hora. Construindo armadilhas e ratoeiras entre si; zombando da inferioridade dos whiskies e do silêncio do brandy.

Queria falar com o brandy, saber como era, o que sentia, de onde viera, mas nem um só som saiu da sua garrafa. O líquido foi sendo esvaziado e um dia a garrafa não voltou. Tardou pouco a que fosse substituído pelo alegre vinho do Porto.

Os gins logo votaram o simpático vinho do Porto ao isolamento e os whiskies excluíram-no das suas conversas impróprias. Sobrávamos apenas nós e, com a naturalidade do movimento pendular dos dias, fomos fermentando uma amizade.

Poucos dias depois do vinho do Porto ter chegado, rondou junto a mim a primeira ameaça. O filho mais velho dos Marqueses abriu o armário e passou os seus dedos grossos, suados, nada próprios de um nobre (pensei eu!), pelo meu delicado vestido de vidro.

Ouvi-o murmurar planos de como seria perfeita para “colher a flor” da sobrinha do Rei. Ao perceber o propósito que teria tremi horrorizada, enquanto os whiskies gargalhavam em histriónica sinfonia. O vinho do Porto manteve a postura de cavalheiro (para um vinho, claro está!) e não esboçou uma emoção.

Senti o meu corpo sair da cama de madeira. Estava perto o apocalipse para mim; o sacrifício em tributo aos prazeres da carne; um matadouro nada honroso e longe dos planos que eu fizera. Duas gotas de suor pingaram da testa do jovem para o meu corpo.

Era aquilo o meu final. Seria envolta num mar de suor, enquanto gemidos lancinantes destruiriam a pouca dignidade que me restaria, após ser grotescamente bebida em pecado e não num pomposo convívio social.

[continua]


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