Memórias de uma Garrafa de Champanhe (1/3)

Fui abandonada no sótão em Outubro de 1910. Brasões caíram comigo e o azul e branco gravados na mais macia seda foram tingidos de verde e vermelho. Estou aqui, sozinha e empoeirada. Perdida no sótão desta casa de gigantes.

Relembro memórias do que fui e do que podia ter sido, abrindo-me em simplicidade ao gentil leitor, quando julgava não ter nada mais para servir. Por companhia tenho duas floutes de champanhe, mandadas vir da Flandres. Uma delas está rachada e a outra sem brilho. Não as ouço murmurar sílabas finas e harmoniosas há algum tempo; há muito tempo.

Flandres deve ser um sítio soberbo para se nascer e viver. O que não teria dado para ir para Flandres. Coisas que uma garrafa de Champanhe não pode mudar, caro leitor. Mesmo assim, gostava de saber como seria tratada em Flandres. Estaria remetida a um escuro sótão? Seria apenas memória frugal de um qualquer álbum fotográfico perdido?

Em boa verdade, não importa. Agora nada mais importa. Em tempos nós as três fomos o orgulho da Família. E agora… Restará de nós, deste trio tão frívolo quanto necessário, uma breve imagem mental e quatro ou cinco fotografias esbatidas. Eu não nasci, não me criei para estar sozinha. Não foi para isso que me venderam, por mais de dez contos de réis.

Sou chique! Importada! Champanhe francês. A Rainha das bebidas. Sim, todo o champanhe deste mundo (e quem sabe também do seguinte!) é feminino. Algum homem, algum ser ou animal masculino, poderia ter o brilho que nós temos? Eles nem se maquilham propriamente nos dias que correm! Não, não, não. Se é champanhe é feminino. Se é masculinidade, imbecil virilidade, que procurais numa bebida gentil leitor, olhai então para o borbulhoso espumante.

Espumante. Esse traidor masculino, que pelo preço baixo e por um fingimento torpe nos rouba os lábios de muitas donzelas amigas. Quantas festas se regaram de grosseiro espumante, dizendo-se beber o mais delicado dos champanhes. Não me interprete mal gentil leitor, mas os humanos tendem a deixar-se iludir com demasiada ligeireza. Confiam em demasia nos sentidos. Não duvidam, não se interrogam, não questionam, não exploram…

Não se ria assim. Pensa, com justeza, o que poderei eu, uma garrafa de champanhe vazia e empoeirada, saber sobre as coisas do pensamento humano. Muito pouco, é certo. Mas sei o que é pensar; o que é duvidar e explorar. Ou acredita mesmo que o champanhe se faz simplesmente por processos ancestrais de destilação e voilá! Une magnifique boteille de champagne!

Não! O champanhe dúvida da sua essência; da sua existência; da sua aparência. Estou a ficar dourada. Mas e se aclarasse a cor? Estou a ganhar gás. Mas e se aligeirasse na efervescência? Estou a ficar apetitosa. Mas e se eu quisesse ser melhor? Ser única e irresistível?

Envolvo-me nas sombras das adegas onde me preparam; mergulho em dúvidas e medos até terminar a minha metamorfose. Não me transformo de hedionda larva para resplandecente borboleta, mas faço uma metamorfose no meio de esplendor e do encanto das adegas sombrias.

Voltemos ao que eu dizia… Saí da loja em 1900. Fui acomodada numa caixa com o cuidado de quem repousa uma criança. No meu ano fomos poucas as que conseguimos transformar-nos em borboletas de beber. Algo estranho, segundo ouvi, uma miasma qualquer, destruíra aquelas que podiam ter sido minhas amigas, que podiam ter viajado mundo fora como eu.

E por sermos tão poucas, tão raras, fomos tratadas como imperatrizes e não como as princesas que somos. A minha cama de madeira era quente e confortável, um paralelepípedo sem imprecisões, no qual encaixava um vidro transparente e fino como papel.

Alinharam-me ao pé das outras imperatrizes, doze garrafas reluzentes, aliás treze garrafas reluzentes que logo passaram a doze por a décima terceira ter-se estilhaçado no chão.

Um descuido do lojista e um pequeno encontrão do pequeno Louis, que ficou de castigo dois meses depois de três bofetadas vigorosas, saldaram-se numa tragédia que se espalhou freneticamente pelo chão da loja. Algumas de nós borbulhámos de pavor não fosse aquele destino estender-se a todas.

Estava pronta para ir para a montra, engalanada na minha cama de madeira e vidro brilhante, mas em vez disso fui embrulhada em papel castanho. Nada que me tivesse apanhado de surpresa.

As doze imperatrizes... Desculpe-me o leitor pelo percalço... As doze garrafas de champanhe seguiram todas para os seus destinos, mas nem uma única ficou na montra. Nesse ano, em que o mundo gregoriano entrou no século XX, foi o traidor espumante quem figurou, todo lampeiro, na vitrina da loja.

[Continua...]


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