Será o Iémen uma nova Líbia?

O Iémen (versão aportuguesada de al-Yaman) tornou-se o estado que hoje conhecemos, no começo da década de 1990; numa época de forte transformação no espaço pós-soviético com reflexos imediatos no espaço do Magrebe e do Médio Oriente. O colapso da URSS impede que se ateste a proposta de Braudel do socialismo-marxista como solução para o Médio Oriente.

Antes da unificação, contudo, o Iémen de hoje compreendia vários projectos políticos díspares. Começando nos finais do século XIX, em 1872 o Império Otomano estabeleceu o distrito do Iémen, que em 1918 se transforma em Reino do Iémen após a implosão do Império Otomano, derrotado na I Guerra Mundial. Em 1962, a dinastia é derrubada e estabelece-se a República Árabe do Iémen. Isto tudo a Norte...

A Sul temos o estabelecimento do Sultanato de Mahra em 1549, após um breve período de dominação portuguesa na zona. Em 1962 estabelece-se a Federação da Arábia do Sul que agrega o sultanato de Aulaqi, a Federação dos Emiratos Arábes do Sul e a Colónia de Aden. Conflitos com o Norte ocorrem em 1972, 1979 e em 1986 o Iémen do Sul mergulha numa guerra civil.

E chegamos assim a 1990. Inspirados pela reunificação do Vietname (1976), pelos fortes rumores, nos finais do anos 1980, de uma reunificação Roménia-Moldova e pela reunificação da Alemanha (1990), a Républica Árabe do Iémen e a Federação da Árabia do Sul tornam-se na República do Iémen unindo o que (ao contrário da Alemanha e do Vietname) nunca antes estivera unido.

A nova República enfrenta várias crises que ameaçam implodir o projecto unionista. Em 1991, a Arábia Saudita e os EUA interferem na política doméstica do novo estado como forma de punição pelo voto "anti-guerra" (no Conselho de Segurança da ONU, no qual o Iémen exerce mandato como membro não-permanente) no decurso da Guerra do Kuwait.

 Em 1992, protestos violentos por causa de escassez de comida ameaçam levar o país a uma guerra civil e em 1993 o governo de unidade nacional dá sinais de poder colapsar a qualquer instante, depois de realizadas as primeiras eleições parlamentares.

Em Fevereiro de 1994, na Jordânia, os representantes políticos do Norte e do Sul chegam a um entendimento, mas isso não é suficiente para travar a guerra civil de Maio-Julho de 1994. É este país, com uma união política frágil, um entendimento macro-social inexistente,e sob constante pressão da vizinha Arábia Saudita, que em 2011 entra na "Estação Árabe" (vulgo, Primavera Árabe).

A revolta popular não é em si um momento de transição política, com uma Unidade Nacional coesa na dianteira e um projecto pós-transição. É antes uma Aliança Negativa anti-Saleh; a ideia era derrubar o Presidente e depois logo se veria... Há medida que os protestos se arrastam a agenda de quem protesta também se alarga, mas a ideia de união para derrubar (o Presidente Saleh) e não para construir (um novo Iémen) subsiste.

Ora derrubado Saleh, que negoceia uma saída menos inglória do que a de Mubarak (Egipto) ou a de Ben Ali (Tunísia) e menos trágica do que a de Gaddafi (Líbia), as várias oposições não têm mais lastro para continuar na Aliança Negativa. E os aliados, que nunca foram amigos, tornam-se inimigos. E a luta pelo poder, quando existe um vazio institucional, generaliza-se.

As últimas semanas, com os actos dos Houthis, apenas confirmam que a unificação do Iémen é um projecto fracassado desde que nasceu. O norte do Iémen, onde pulsam dezenas de vários grupos étnicos e de clãs dissemelhantes, já pugna pela separação (inspirados pela Ucrânia? ou pela Escócia?) e o sul do Iémen parece estar na iminência de mais um conflito interno.

A implosão do Iémen surge como surpresa menor, se nos lembrarmos que na Líbia pós-Gaddafi o clima de guerra civil já levou a vários pronunciamentos autonomistas, logo silenciados, e tem impossibilitado a pacificação do país; quanto mais a consolidação de uma transição que resultou num retrocesso estrondoso.

A instabilidade do Iémen, mesmo que não leve a uma cisão entre Norte e Sul, prova, tal como a Ucrânia e a Líbia e a Geórgia, que as transições focadas apenas nas dimensões político-institucionais e económicas tenderão sempre a falhar. A questão étnico-identitária e o subjacente pilar cultural deveriam ser questõs centrais, prioritárias, nas agendas destes espaços sociopolíticos.

O Consenso de Washington falhou, porque desenvolvimento económico não é condição sine qua non para democratização e, ao mesmo tempo, a construção de instituições proto-democráticas tenderá a ser vazia (e por isso fracassada!) sem um pano de fundo cultural que se adapte a estas novas instituições, respeitando as várias identidades psicossociais que partilham o mesmo território.

O Iémen, mesmo que não imploda formalmente, já é uma nova Líbia porque ruiu na capacidade de construir consensos alargados e deu lastro a um adensar de inimizades entre grupos que partilham um espaço comum, mas querem domínio exclusivo do mesmo. Ora se todos querem tudo sem abrir a porta a mutualidade e concessões; tudo só pode correr mal...


Comments