Já não preciso fugir...

Deitei-me com receio... O dia seguinte (hoje, portanto!) traria o princípio do Kurban Bayram (Festival dos Sacrifícios). O feriado que se prolonga por vários dias gravita em torno de uma única ideia: família. É este o tempo de visitar familiares longínquos, de passar tempo com familiares próximos e de adensar laços, memórias e vivências familiares...

O feriado é, para um emigrado a solo, uma crueldade inocente. Cruel, pois como se festeja a família quando a mesma está longe? Demasiado longe? Mas inocente, porque enquanto todos fazem planos do que farão com as suas famílias não percebem o sorriso ensaiado, sem emoção, que desenho no rosto. O feriado não é meu mas que importa? Terei que o "viver" na mesma.

Deito-me então com receio... Ainda me lembro de como o ano passado, recém chegado a uma vida nova, num país novo, num continente novo, me custaram a passar os cinco dias do Kurban Bayram. Como se festeja o amor familiar, quando a família se resume a memórias, acopladas a sensações que despoletam sorrisos e lágrimas e, quem sabe, a uma ou outra conversa pelo skype?

Antes de me deitar entrego-me a uma tarefa frenética em busca de uma viagem... Quero viajar para algum lugar... Olho por hotéis em Izmir, em Bursa, em Antália e até em Istambul. Procuro horários e preços de voos, autocarros e comboios. Quero viajar para algum lugar... Enquanto as famílias se reencontram eu quero perder-me, deixar-me ir. Quero viajar para algum lugar...

Deito-me com receio e acordo a sorrir. Durante a noite recordo como, o ano passado, ao terceiro dia do Kurban Bayram, a campainha cá de casa soou. Teria o meu colega de casa vindo mais cedo de Samsun? Estranhei... Abri a porta e vi o rosto sorridente de um jovem que conhecera uma semana antes.

O jovem, estudante de música em Gaziantep (cidade próxima da fronteira com a Síria, vinha em minha busca. Sabia que eu estava sozinho e queria resgatar-me. E apesar de mal falar inglês e eu falar apenas, na altura, dez palavras de turco convidou-me a juntar-me à família dele. Convidou-me a almoçar com eles e a ouvi-lo tocar bağlama.

Enquanto preparo o café, que me acorda todas as manhãs, volto a sorrir. E lembro como, o ano passado, ao quarto dia de Kurban Bayram, o dono do estabelecimento onde costumo jantar tentou perguntar-me se estava bem e cozinhou para mim um prato que nem vinha na ementa. E recusou-se a receber dinheiro pelo esforço. Um presente de quem estivera com a sua família e lamentava quem não podia ter estado...

Olho para o computador; para as buscas de hotéis, de voos, de autocarros, de comboios e até de taxis. Para os vários pacotes que anunciam viagens a preços imperdíveis e fecho as janelas uma a uma. Eu não quero, não queria, viajar; queria fugir. Fugir da celebração da família, quando a família está longe. Fugir do feriado que não é meu, mas que tenho que "viver" na mesma. Fugir...

E eu que acredito que a família é mais do que os laços de sangue, que contam muito mas não contam tudo, percebo como mesmo em Portugal estaria semi-orfão. Como a minha família, de sangue e de amizade, se tem espalhado desde a Suiça, ao Congo; da Sérvia, à China; da Bélgica, a Moçambique; do Reino Unido, a Angola; da França, à India.

E percebo que não preciso fugir. Porque mesmo aqui, no meu cantinho na Anatólia, comecei já a construir uma família. Criei já laços de amizade e lealdade que, não substituindo a família que ficou longe, aconchegam o coração e reconfortam a alma. Fugir é para quem está só e eu não estou só. Percebo como não preciso de fugir porque a família não se perdeu, cresceu; a família ficou longe, mas agora também está perto.

Ainda não sei se amanhã fico por aqui, ou se viajarei na mesma. É uma doce incógnita sobre a qual prefiro não me delongar. Ainda não se se amanhã descanso, se me devoto a trabalhar, ou se simplesmente me deixo ir por aí. Mas sei que amanhã não fujo. Sei que não preciso fugir... porque apesar da família, de sangue, estar longe; a nova família, de amizade e lealdade, acolhe-me. E, com uma lágrima a deslizar pelo rosto, sorrio...


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