Notas sobre um caos chamado Iraque

Em Novembro de 2010 tive o priviégio de participar numa série de eventos paralelos no âmbito Cimeira da NATO que aconteceu em Lisboa e na qual a mesma aprovou um novo documento orientador, quase que uma nova Constituição. Fiz parte daquele grupo de pessoas que "fechou" o acesso do público ao Parque das Nações por alguns dias.

No meios dos vários eventos lembro-me de ter sido entrevistado pela NATO TV. Queriam saber como estava a correr o evento. E eu, honestamente, lá fui fazendo o laudatório dos pontos positivos... Mas a certa altura disse (em inglês, claro está): "Tenho contudo a notar que não estamos a falar de um ponto crucial: do Iraque. Não estamos a tirar lições do que fizemos em 2004."

O entrevistador olhou-me com pouca simpatia. Tentou manter o sorriso, mas falhou na tentativa. Agradeceu as palavras; olhou para o operador de imagem como quem fala, sem abrir a boca e a entrevista terminou ali. A entrevista em causa nunca foi exibida no website da NATO. Afinal porque iriam publicar as palavras inconvenientes do jovem Secretário Executivo do Observatório de Segurança Humana?

Alguns anos depois parece que a pergunta era afinal pertinente! O Iraque, para espanto de meio-mundo, parece ter descido numa anarquia de facções com a ISIS, a Al-Qaeda, os Curdos e as forças pró-governo a tentarem aumentar o seu capital de influência. O Iraque está na eminência do colapso, tal como acontece com a Síria, com a Líbia e, passo a passo, poderá acontecer com o Líbano.

A invasão ao Iraque em 2004 não devia ter acontecido, pelo menos não do modo como aconteceu. Aos que aludem que com Saddam Hussein o país vivia com maior estabilidade; eu digo que nenhuma estabilidade poderá justificar a manutenção de ditadores com tiques semi-divinos. Por outro lado, a invasão sobre falsos pretextos e feita como foi só poderia desembocar no ponto em que estamos: em caos.

O Iraque, no pós-invasão, precisava ter sido submetido a um programa que facilitasse a aproximação dos vários grupos etno-religiosos que compõem o Iraque. Era a eles, após encontrarem um espaço de macro-comunalidade, que competeria desenhar o esquisso institucional do Iraque pós-Hussein. O Ocidente militarista e arrogante não fez nada disso: impôs um modelo de governação, um sistema político e criou um regime em que o Estado protectorado que falharia sem apoio dos Estados protectores.

Na tal Cimeira, lembro-me de numa das conferência um General da NATO estar contentíssimo com os micro-progressos alcançados no Iraque. O discurso, galante e sedutor, fazia-se com muitos "ses" e "talvez". A cada pergunta incómoda, a resposta vinha sempre com o floreado da diplomacia de Washington. Circular, com argumentos curiosos mas sem profundidade e sem relevância.

O Iraque entretanto foi dando sinais de que estaria a fraquejar. Vários analistas e académicos alertaram para o facto de Maliki controlar, e mal, apenas Bagdade. Para o facto do Iraque ser um novo Afeganistão em que o Presidente é mais um Alcaide da capital, do que um responsável responsabilizável pelo Estado. Como é costume, os analistas e académicos foram considerados alarmistas e a retórica dos "ses" imperou.

Mas os "ses" podem nunca acontecer! E no Iraque chegámos ao ponto em que a insurgência começa por força de uma força que se separou da força inimiga. As tropas da ISIS não combatem pela Al-Qaeda, apesar de se terem formado dentro desta. A ISIS tem planos próprios, que levaram a uma cisão com a Al-Qaeda antes mesmo de se avançar para a conquista dos vários pontos estratégicos.

Os Curdos, mais a Norte, aproveitando o vazio de poder tomaram o controlo do Norte do Iraque para si e aumentaram o seu controlo sobre as zonas curdas na Síria. O Curdistão, mais do que nunca, parece ser uma realidade de médio-prazo; realidade que trará instabilidade à Turquia e que poderá ter reflexos dramáticos no Líbano.

É impossível saber-se, ao certo, o que vai acontecer no Iraque. Mas é possível dizer que "sacudir a água do capote" como se apressaram a fazer Tony Blair e Durão Barroso; ou ignorar culpabilidade como fez Barack Obama, não trará quaisquer soluções. Mais ainda, a imposição da força pela força não resolverá nada, porque por cada cabeça cortada à hidra, três novas cabeças nascerão.

O Iraque precisa de um programa de construção de um Nós comum, que não dilua os vários pequenos Nós comunitários. Um programa que tenha na cidadania, identidade política, o seu centro; mas que essa cidadania não estrangule a etnicidade, identidade sócio-cultural. Um programa de aproximação ao comum, entre os que se percebem apenas como diferentes, que não se resuma a um esquema de unanimização e padronização.

O Iraque precisa de um visão diferente; que rasgue com os erros feitos na região (os sinais que começam a vir do Afeganistão não são nada tranquilizadores) e que devolva aos protagonistas locais a capacidade de protagonizarem o seu futuro. E o Ocidente-NATO tem que perder a postura pós-colonialista de olhar para a diferença como sinal de barbárie e de retrocesso...


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