Ucrânia e os Referendos, parte II (de uma possível trilogia)

Ontem Donetsk e Luhansk (regiões do Leste da Ucrânia) realizaram referendos nos quais perguntavam apenas uma questão: "É a favor da constituição da República Popular de Donetsk/Luhansk?". A população foi chamada a votar e, segundo os separatistas, mais de 70% dos eleitores compareceram à chamada. O resultado foi o esperado: a vitória do Sim!

Os separatistas, já o disse, clamaram por uma taxa efectiva de participação superior aos 70%. Hoje, o Presidente interino da Ucrânia avançou com números bem mais baixos: 24% em Luhansk e 32% em Donetsk. Números mais baixos que, mesmo assim, são superiores aos 0% de Ucranianos que votaram neste governo interino imposto pela vontade de uns em Kiev. Mas a Ucrânia não é só Kiev...

Um dos argumentos avançados contra a realização dos referendos é a não-participação de toda a Ucrânia nos mesmos. É o facto de se restringir o referendo à população da região sobre o qual o mesmo incide. Este mesmo argumento, curiosamente, parece ter incomodado menos (ou quase nada) quando o Kosovo fez o seu referendo pró-independência. A Sérvia foi chamada a votar? Uma vez mais, questiona o Fidalgo, porque são umas acções mais ilegais do que outras?

Ainda decorriam os referendos e já a Europa se manifestava em favor do Governo (pós-golpe de Estado) central de Kiev, clamando pela ilegalidade dos referendos. Curiosamente, a mesma Europa de Bruxelas não vê que o governo central, que apoia tão fervorosamente, também carece de legalidade e de legitimação popular. Ou agora a democracia passou a jogar-se em golpes de estado e não em eleições?

Dizem as vozes contra os referendos de ontem, que a realização destes contraria o espírito da Constituição da Ucrânia. Ora sendo isso verdade, a chegada ao poder do actual governo interino também contraria o espírito da Constituição da Ucrânia. A questão volta a pairar: porque é que umas ilegalidades são mais ilegais do que outras? Onde está o equilíbrio nesta equação?

A Europa da União mostrou, contudo, coerência num ponto: a condenação aos referendos! Desde as traumáticas experiências da fracassada Constituição Europeia, que a Europa da União desenvolveu uma referendo-fobia que a tem levado a uma campanha contra as consultas populares não apenas na Crimeia, mas também no Reino Unido e na Espanha.

A Europa da União, que se diz um projecto solidário feito em prol das pessoas, parece temer o clamor das populações quando estas procuram apenas uma coisa: o direito à auto-determinação; a capacidade de decidirem politicamente enquanto colectivo social que se vê como exógeno ao Estado a que pertence. E se amanhã Abrantes, mero exemplo especulativo, quiser ser apenas Abrantes e não Portugal? Azar, dirá a Europa da União...

O que os referendos de ontem também demonstram é que a teimosia de Kiev em adiar a federalização, apenas porque esta foi inicialmente defendida por Moscovo, levará a uma implosão da Ucrânia. Os referendos mostram também que Donetsk e Luhansk, com o apoio tácito de Moscovo, estão a usar os instrumentos políticos do Ocidente contra o próprio Ocidente.

A recusa de Kiev em federalizar a Ucrânia já originou violência, mortes e três referendos (não esqueçamos a Crimeia) pelo direito à auto-determinação. A teimosia política de uma Bruxelas fechada em preconceitos e estereótipos típicos da Guerra Fria, combinada com o revisionismo históricista de Moscovo ameaçam um novo "apagão" da Ucrânia do mapa-mundo. E Donetsk já chama por Moscovo...

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