E que o preconceito tinha desaparecido, não era?

O Fidalgo achava que, este ano, não iria ter que escrever sobre a Eurovisão... Mas o Fidalgo enganou-se! A vitória de Conchita Wurst, a cantora austríaca que apareceu em palco com um vestido de noite dourado e uma barba (lembrança da sua masculinidade) a combinar, foi motivo suficiente para despoletar uma série de reacções irracionais nos espaços sócio-virtuais.

Facto: Todos temos o direito à opinião, mas convém fundamentar a mesma sobre o risco de a mesma se esborar num exercício de futilidade trivial. Também facto: Não temos todos que gostar de Conchita Wurst. Eu, pessoalmente, comecei por apostar nas canções da Arménia e da Suécia, antes de me render aos dotes vocais da cantora da Austria.

Outro Facto: Quem diz não gostar da vencedora deveria, primeiro que tudo, ouvir a canção. É que apontar o dedo só porque a senhora tem barba é esquecer que falamos de um concurso musical e a Conchita foi, inegavelmente, uma das melhores músicas da noite.

Que uma certa elite na Rússia tenha descoberto, de súbito, que não gosta da Eurovisão (isto apesar do televoto dos espectadores russos ter colocado a canção em segundo lugar) eu ainda percebo (não aceito, mas percebo). O mesmo vale para a Bielorrússia, o Azerbaijão e para a Arménia, que na Geórgia houve coragem...

Mas que imensos portugueses revelem a sua persona de aderentes da Santa Inquisição, deixando-se apenas levar na onda do "aponta-o-dedismo" sem sequer ouvir a música acho patético. Desculpem a franqueza, mas acho patético. Critiquem depois de ouvir a música, mas só depois de ouvir a música. Pode ser?

Uma série de "virgens ofendidas" ficaram admiradas com a vitória de Conchita Wurst, cuja canção nos remete para o glamour extasiante de um filme de James Bond... Para esclarecer os mais distraídos, a Conchita Wurst não é a primeira vencedora não heteressoxual da Eurovisão. Aparentemente esquecemos, ou nem sequer sabíamos, que em 1998 a israelita Dana International arrebatou o primeiro lugar com a canção "Diva".

E quando as ondas de choque, porque o preconceito cego e desinformado reage assim, em choque, com a vitória da Conchita Wurst acalmaram, eis que no jogo da final da Liga Europa dois jogadores do Sevilha (a equipa vencedora) trocam um beijo na boca.

Um pequeno momento que não chega a durar 4 segundos, mas que apareceu em loops de 40 segundos em vários websites ditos informativos. Eis que no final de uma competição de futebol, essa catedral da masculinidade e da macheza, dois homens selam o seu afecto com o contacto lábio no lábio.

Piorou todo! Graçolas pouco inteligentes, comentários primários, de muita gente que se dizia "livre de preconceitos", e remarques descriminatórios invadiram o facebook e o twitter. Percebo contudo a admiração-desinformada de muita gente; porque isto do conhecimento não é como o sol, quando existe não é para todos. Mas o Fidalgo, bom amigo, passa a explicar umas coisinhas.

Não é preciso ser-se homossexual para dar um beijo na boca, com uma pessoa do mesmo sexo. Inúmeros pais e filhos selam assim o seu afecto, sem problemas quanto à sua sexualidade. É apenas uma demonstração de carinho e não um "muppie" a exibir a sexualidade de alguém. Dirão mas entre família é diferente. Certo! Rebate o Fidalgo: e como se define família? Pela crueza da genética? Ou pelos afectos partilhados? 

Mais, só para dar outro, de milhares de exemplos possíveis: na época medieval os contractos de suserania, em que um Nobre (Suserano) protegeria outro Nobre (Vassalo) em troca de fidelidade, honra e de ajuda em momentos de guerra, eram muitas vezes selados com um beijo na boca. O Suserano e o Vassalo beijavam-se na boca, depois de jurarem perante a Biblía Sagrada, porque essa era a prova maior de confiança.

É verdade que o Zoroastrísmo levou a uma polarização da vida social e a uma recriminação do "sexo-pelo-prazer" que se substituiu ao "sexo-pela-procriação". É também verdade, que no Cristianismo (influenciado pelo Judaísmo, que bebe influência no tal Zoroastrísmo) a condenação feita pelas tais sagradas escrituras é para como todo o acto sexual não reprodutor.

Isto é, era indiferente que fosse entre duas pessoas do mesmo sexo, ou de sexo diferente... Toda a actividade sexual não-reprodutora (sexo oral, anal, com preservativo ou masturbação) passa a ser recriminada. Ou seja, toda a experiência sexual deixa de valer pelo orgasmo (fim) para se justificar na reprodução (um meio).

E mesmo com tudo isto, os Nobres pela Europa fora selavam os seus contractos de fidelidade com um beijo na boca porque o preconceito redutor não os coibia disso mesmo. Ainda hoje, de resto, os beijos na face entre homens com amizades sólidas pelo Médio Oriente fora são mais do que comuns... Mas na Europa civilizada ficámos restritos ao aperto de mão. Talvez nos tenhamos civilizado de mais e aprendido de menos...

Está em crer o Fidalgo que foi isso que aconteceu em Turim... Um beijo de afecto, de quem sela confiança e celebra um feito pelo qual se batalhou durante uma época (não esquecer que para o Sevilha era a Liga Europa, ou nada). O mais curioso é que muita da jocosidade contra o beijo de Turim e a campeã de Copenhaga vem de quem não se aceita e projecta ódio ao mundo, por não se aceitar.

Muitos dos comentários que impedem uma sexualidade descomplexada, porque em última instância a comunidade LGBT (para lá do espalhafato dos brilhantes e das marchas coloridas) quer apenas ter o direito à indeferença pela diferença, vêm de quem tem complexos escondidos no seu armário. Muita da jocosidade é expelida por quem, inseguro da sua sexualidade, pensa fortalecer a sua posição na "normalidade social" agindo de modo anormal...

O Fidaldo estava em crer que os tempos eram outros. O Fidalgo achava que apesar de uma série de retrocessos sociais por esse mundo fora, no cantinho lusitano a sociedade se encontrava em rota para uma descomplexidade face á sexualidade; para uma aceitação da felicidade como norma-padrão e não da imposição do "com-quem-fazes-o-que-fazes". Mas o preconceito, esse bicho larvar que teima em não morrer, voltou a roer um pouco mais da maçã. E depois admiramo-nos de termos sido expulsos do Paraíso!


Comments

kanjas said…
A Conchita faz-me lembrar do Prince :) Apenas e só. Não sigo o festival da canção e ouvi a música porque apareceu no facebook. Não é a minha "cena" mas siga o baile, que amanhã já há outro assunto a roubar o tempo de antena :)

Quanto ao Carriço e o Rakitic... Foi giro e caricato mas não é único nem sequer é merecedor de tanta tinta.
Dizem-se a favor da liberdade sexual mas depois saltam a cada demonstração de afecto/carinho/amizade que os outros possam ter em público (sejam hetero ou homossexuais, cada um sabe de si e é livre de fazer o que bem entender).
kanjas said…
Ah! Perdeste-me quando começaste no Zoroastrismo? :P