Não sou personagem, não sou leitor, mas sei que Sou!

Se me dissessem em Novembro, ou mesmo em Outubro, que iria estar em Lisboa duas vezes seguidas, com um mero intervalo de dez/onze dias, teria sorrido simpaticamente e pensado, em silêncio, "coitadinho/a, apanhou uma insolação qualquer". Mas a verdade é que amanhã aterrarei em Lisboa quando apenas a 8 deste mês levantei voo de regresso ao meu novo canto no mundo.

Dei por mim a sorrir quando acordei de manhã. Estes dez/onze dias foram acompanhados pelo meu amigo silêncio, pela minha companheira saudade e por uma nova amiga: Ayşe Kulin. Descobri o primeiro livro (traduzido para inglês, claro) quando a 17 de Janeiro passeava por Ankara e o meu coração palpitava pelo voo do dia 18 de Janeiro que me levaria de volta ao meu país, quatro meses após a ausência.

A capa do livro chamou-me a atenção e depois de ler a sinopse na contra-capa fiquei automaticamente com vontade de ler ali o livro; afinal sempre gostei de um bom romance histórico. Mas a emoção do regresso ao meu país foi mais forte e a amiga Ayşe teve que esperar pelo meu regresso.

Regressei a 8 de Fevereiro, mas só a 9 de Fevereiro cheguei a Kırıkkale. Pelo meio passei umas quantas horas (75% das quais a dormir) em Ankara. Levei um par de horas a desarrumar a mala, meio assassinada pelo pessoal que trabalha nos aeroportos, e a organizar o caos animado de cores, tecidos e texturas em que se transformou o meu quarto.

Por momentos, o quarto transformou-se num bazaar e até conseguia ouvir os pregões expelidos com alegria e vivacidade, por vendedores com os olhos cheios de estórias por contar. O dia 9 passou-se e Ayşe continuou a esperar por mim, com a paciência tão característica dos grafemas...

Dia 10 de Fevereiro. Folhei-a, senti o cheio a novo; senti a emoção de ter perante mim uma aventura que se oferecia à minha leitura, ao dedilhar gentil dos meus dedos, ao exame metódico do meu olhar. E deixei que a estória se desvelasse.

Não foram precisos muitas páginas para ficar prisioneiro dos grafemas. E enquanto eu me apresentava às minhas seis novas turmas, as personagens de Ayşe desfilavam uma a uma. E eu era cada vez mais um persona do livro e não um mero leitor, na passividade mole de quem apenas absorve.

A semana foi-se desfiando e a estória foi tomando conta do meu dia-a-dia. Eu tinha que saber o que ia acontecer ao ministro Reşat, à sua esposa Behice, ao intrépido Kemal, à apaixonante Mehpare e a todos os outros. Nomes que deixaram de ser meras impressões, gravadas nas folhas de papel, mas que passaram a ser meus companheiros durante estes dias.

Ontem fiz a mala, uma vez mais! Sem caos, sem a vibração do bazaar instalada no meu quarto, sem consumir sequer meia-hora. E enquanto fazia a mala reparei que o livro também se preparava para o seu final. Agora que me preparava para partir, uma vez mais, antes de poder regressar, para em Abril partir e regressar de novo, o livro também se preparava para partir... para a prateleira, claro!

As vidas de todas aquelas personagens, amigos que fiz nos dias que mediaram entra duas idas a Portugal, preparam-se para atingir um final. A vida deles está presa entre 414 páginas, a minha não tem ainda o número definido mas té-lo-á um dia. A vida deles imortalizada enquanto a tinta for legível, mas presa numa bolha temporal de quem viverá para sempre entre 1919 e 1924. E se a minha não está presa, ainda, numa bolha temporal, está delimitada entre viagens. Entre decolagens e aterragens de passarões de metal...

Sei que não sou personagem do romance de Ayşe, apesar de ter vivido a estória com uma intensidade alucinante, mas também sei que não sou (raramente sou) um passivo leitor. Sei que Sou algo mais, algo que não se define, que não se cataloga, que não se conceptualiza... E porque haveria de se definir? Sei que Sou e isso é que importante, porque para o Ser basta-me saber que sei. E amanhã aterro em Lisboa!


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