Vitórias, mesmo pequenas, são vitórias...

Hoje decidi que era tempo de dar mais um passinho na minha autonomização em Kırıkkale. Decidi que, ao final de três meses e meio, era tempo de ir fazer compras sozinho. Até aqui aproveitava as idas de colegas, ou de conhecidos, ou de amigos para não ter que falar com quem está na caixa; com que está no balcão da fruta; na peixaria; na padaria... E por aí em diante!

Saí da Faculdade, entrei no dolmuş (mini-autocarro com um nome curioso, já que dolmuş quer dizer "preenchido/cheio") e aproveitei a viagem para fazer a minha mini-lista de compras. Achei que fazia sentido, uma mini-lista, num mini-autocarro, numa mini-viagem de 20 minutos. Tem pouco interesse a lista de compras de um solteiro que passará a noite sozinho, a corrigir exames, mas posso revelar que inclui laranjas e água e gomas...

Saí na paragem que me compete e subi a rua, que me pareceu mais íngrime do que o costume. E, ao vislumbrar o şok (supermercado, cujo nome quer dizer "choque") não segui em frente, como costumo fazer. Parei. Olhei o relógio. Olhei o telemóvel. Atei um sapato. E entrei por fim. Fui bastante eficiente, dirigindo-me às parteleiras com a agilidade de um ninja, que conhece o espaço até de olhos fechados. O difícil, eu sabia, seria o depois...

Vi o rapaz que estava na Caixa de longe. Um homem nos seus cinquenta pagava por dois maços de tabaco e uma embalagem de queijo fresco. As três raparigas que estavam à minha frente, com a imperiosa missão de comprar uma escova dos dentes, foram atendidas em menos de dez segundos. E chegou a minha vez. Simpático, dirigiu-me um hoşgeldin ("bem-vindo") que respondi prontamente com um hoşbulduk (que se pode traduzir como "é um prazer estar aqui").

E depois o rapaz tentou dizer mais qualquer coisa, mas percebi apenas a primeira palavra Abi (tratamento próximo do nosso "O senhor"). Respondi com um türkçe yok ("não falo turco"). O rapaz não acreditou muito. Não acreditou e decidiu, para me punir de fingir ser estrangeiro, não me ajudar a ensacar as coisas. E depois de ter pago, enquanto terminava de arrumar tudo, uma fila com seis pessoas olhava serenamente para mim. Duas senhoras sorriam, olhando para mim como quem olha para uma criança.

Saí do şok bastante encarnado, mais do que os tomates demasiado maduros que me recusei a comprar. No pequeno trajecto que liga o supermercado ao meu prédio, a alsa do saco das laranjas achou por bem, como quem se diverte, romper-se. Imaginei uma cena estilo "Num Bairro Moderno" de Cesário Verde, mas com metade da elegância e o dobro do embaraço. Um português com sacos de compras a perseguir laranjas, não me parece muito poético...

Consegui suster o saco, entrelançando os dedos com mais brio do que uma hera. As escadas foram subidas com calma, que sentia a alça de outro saco dar sinais de querer romper. Abri a porta nem sei bem como, por momento acho que ganhei uma terceira mão. Abri a porta, pousei tudo lentamente no chão, ou quase tudo. A alsa do segundo saco rompeu e as duas garrafas de água cairam com estrondo, mas sem prejuízo. Ainda bem que, no último instante, escolhi as de plástico!

E depois de arrumar tudo senti uma pontada de orgulho, como se tivesse trepado ao Evereste, no pico do Inverno e apenas com roupa interior. Senti uma pontada de orgulho maior do que o feito; mas o feito na sua pequenez é grande. Pelo menos é assim que o vejo. Disse-me uma amiga quando vim para aqui "sai de casa e conquista a cidade, que em breve será tua!" A conquista continua!

Comments

Olga said…
"Pequeno" contador de histórias... Acho extraordinária a capacidade que algumas pessoas têm em transformar o trivial, como se fosse possível colorir (já que se referiu Cesário) a realidade... Parabéns pela vitória, que não se resume apenas à compra de algumas laranjas e garrafas de água.
Para se brincar com as palavras é preciso compreendê-las e esse privilégio é só de alguns.