E aos quatro meses... egoísmos...

Faz hoje quatro meses que me mudei de Abrantes para Kırıkkale. E apesar de ambas as cidades estarem sensivelmente a 1h30 da capital (curiosa coincidência), as semelhanças praticamente terminam aqui. Mas, quando a 16 de Setembro acordei por estas paragens, eu não contava encontrar uma réplica de Abrantes no solo que já foi de Bizâncio, dos Seljuks e dos Otomanos.

Curioso, tenho reparado que sempre que celebro a efemeridade do tempo (mais um mês no meu novo mundo) o dia tende a revestir-se de núvens e o sol fica tímido. Esconde-se! Como se o sol não quisesse participar no constante exercício de mnése que ora me alegra, ora me entristece. Como se o sol não quisesse que eu o culpasse por ter deixado para trás família e amigos de longa data. Mas o sol que descanse, que não o culpo!

Ao celebrar os quatro meses de estadia em Kırıkkale (curioso, uma vez mais!) estou pertinho de regressar a Abrantes para um interregno de três semanas. Amanhã darei dois exames pela manhã e depois partirei rumo a Ankara e no sábado, pela tarde, pisarei solo luso, se ainda não se tiver vendido o solo... Por estes dias, ao que vejo, Portugal parece mais uma venda de garagem, do que o país com as fronteiras estáveis mais antigas do mundo. Mas divago...

Aos quatro meses notei que tenho poucas fotos de Kırıkkale no computador. De Konya, de Çanakkale e de Ankara tenho albuns recheados de imagens, mas da cidade onde resido não chegam a ser dez as fotos que tenho... Penso em Abrantes e em Oeiras, onde já residi, e concluo o mesmo. Estranho hábito este de não fotografar os locais onde resido. Como se os tomasse por garantidos e achasse fútil registar o que não se perderá...

Mas se há coisa que tenho aprendido, é a não confiar na eternidade; porque a mesma não é mais do que o simples adiamento da perenidade. Mas no final tudo perecerá. É inevitável. E enquanto pensava em tudo isto decidi-me a tirar fotografias da cidade que agora chamo de minha. Há dois meses atrás a ideia ter-me-ia parecido absurda, correndo o risco de me perder nalguma ruela. Mas já não estou no há dois meses atrás! Agora se me perder pouco importa... Logo me encontrarei!

Vesti-me sem pressas, desci as escadas do prédio, subi a mini-colina que tenho perto do meu prédio e depois (como tudo o que sobe!) desci-a em passo estugado. Num instante dei por mim a ver ruas, a ver com os olhos de quem lê e não de quem as mira. Dei por mim a procurar detalhes, coisas bonitas para se fotografar. Dei por mim a procurar o belo, como se o mesmo fosse raro.

Fui até ao coração da cidade. Uma cidade cheia de vida, frenética, com gente a aparecer e desaparecer no emaranhado confuso das ruas de Kırıkkale. Em Kırıkkale respira-se confiança no futuro e sonha-se. Bem diferente do país de onde fui empurrado. Onde sonhar é uma quimera e a confiança torna-se, de dia para dia, num conjunto de grafemas sem real sentido.

E enquanto pensava em tudo isto o som vibrante do adhan (o chamamento para a oração) encheu as ruas. As palavras do imã ecoaram pelas ruas apinhadas de gente. O imã chamava para rezar, mas a minha mente chamava a si imagens e sons distantes... Os sinos de S. Vicente. O som puro e majestático dos gigantes de metal que, aos domingos, se fazem ouvir pela cidade. Não usam palavras, eu sei, mas não perdem o magnetismo e a capacidade de chamar os crentes.

Sorrio sozinho, enquanto as ruas de Kırıkkale perdem muitos transeuntes que desaparecem na direcção da mesquita. Sigo a demanda. Vejo tudo, mas a tal beleza parece escapar-me. O tal magnifíco que merece ser salvo nos fotogramas não aparece. E decido regressar. No regresso vejo os sítios que recentemente me fizeram feliz, com pequenas mas hercúleas conquistas. Contradição? Que o seja; é o que sinto...

E ao regressar percebo que o belo de Kırıkkale não está nos edifícios históricos, que poucos tem, ou em ruas sumptuosas, que não tem. Está no quotidiano; no regular; na normalidade. Kırıkkale não é bonita por ser magnifica, é bonita por ser normal. E para quem saiu de um país que anda meio-louco e meio-alucinado, a normalidade é o que mais se deseja.

Abro a porta do meu apartamento. Volto a sorrir. Só tirei três fotografias. E não teria tirado mais. Esta cidade é minha e é assim que a quero: Minha! Contarei as aventuras, a quem quiser ouvir. Relaterei peripécias, momentos de tensão e episódios animados, mas as cores e as formas da cidade serão do tamanho das minhas palavras. Desculpem-me todos, mas a cidade é minha! E é assim que a quero!

Vejo as fotos. Três! Uma no parque, uma na mesquita e uma na torre do relógio. A do parque está tão desfocada que só pode ser eliminada. Quem quiser conhecer o dragão e o cão do parque, terá que esperar pelos meus relatos. São meus! Sobram duas. A foto da mesquita arquivo-a. Não vejo problema em mostrar a mesquita. Será um ponto de referência. Uma excepção, nesta torrente de egoísmos dos quais não abdico. Tenham paciência...

A foto da torre do relógio. É esta que postarei neste post. Quando a tirei estava um casal nos seus 75/80 anos num banquinho, a beber chá. Tal como o relógio e a torre do mesmo, o casal não parecia preocupar-se com o tempo. Olhavam um para o outro e, sem palavras, bebiam o chá. O tempo que passasse; os miúdos que passassem; os jovens que passassem; o portekiz que passasse. O casal egoísticamente não se preocupava com o tempo. Invejei-os... Também quero os meus egoísmos! Não tiro mais fotos!

E dia 18 de Janeiro regresso a Portugal... Para poder regressar a Kırıkkale...

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