O Urso tem as garras de fora?

Moscovo voltou a mostrar a cara feia do nacionalismo ultra-eslavófilo, de cariz exclusivista e xenófobo. É pouco correcto dizer que o nacionalismo "está de volta" à Rússia, porque esta Rússia, a do pós-sovietismo, é por definição nacionalista. Foi de resto o discurso de salvação nacional que deu a Yeltsin o poder para desafiar Gorbachev e despoletar a transformação da União em Federação.

O nacionalismo foi a base de construção da Rússia feita Federação. Yeltsin usou a nação como escudo num momento em que os russkyi questionavam "quem somos?", após o colapso da União Soviética. Foi a nação que permitiu aproximar os não-russkyi de Moscovo, com Yeltsin a dar às outras nações toda a autonomia que conseguissem engolir (com óbvias excepções no Cáucaso Norte e na região do Médio Volga).

O nacionalismo permitiu a Vladimir Putin, vindo das sombras do FSB, destronar Yeltsin; projectar a Rússia para os russos e adiar a resposta a essa questão central: "quem somos"? O nacionalismo de Yeltsin, que protegia os russkyi mas dialogava com os demais povos, foi-se estreitando... Putin percebeu cedo que o nacionalismo era uma força mobilizadora poderosa e usou-a sempre que precisou.

É o nacionalismo de cariz eslavófilo que justifica as fotografias do Verão de 2009, em que Putin exibe a sua masculinidade a nadar em águas geladas e a cavalgar semi-nú. É o nacionalismo que justifica a incapacidade de se organizarem eventos internacionais em Moscovo, em que o russo não tente reclamar o seu espaço taco-a-taco com o inglês. É nacionalismo que vai excluindo todos os "outros", que mostra agora o seu lado mais feio, mais violento, menos racional.

O nacionalismo não é necessariamente vil, como por vezes dão a entender alguns comentadores da praça. Mas este nacionalismo exclusivista, ultra-eslavófilo, pode tornar-se incendiário (se não mesmo calamitoso!) quando combinado com uma ascensão das extremas-direitas na França, na Áustria, na Hungria, na Espanha, na Grécia, na Polónia, na Bulgária, no Reino Unido e mesmo na Alemanha.

O curioso do nacionalismo ultra-eslavófilo é que o seu discurso é, quase todo, voltado para dentro. Os migrantes contra quem se cantam cânticos, contra quem se protesta e em quem se exerce violência, são quase sempre migrantes internos; quase sempre de origem Ciscaucasiana; quase sempre muçulmanos. O nacionalismo que ontem saiu à rua quer purgar Moscovo dos migrantes internos. O nacionalismo de ontem quer a Rússia para os russkyi e só para os russkyi.

A violência do protesto de ontem foi apenas um aviso, mais um, de uma espiral de eventos que poderá descarrilar sem aviso. Já antes, num passado bem recente, o futebol desencadeara um fenómeno de hooliganismo-ultra-nacionalista, com cenas de violência entre russos e tchetchenos. Não são de resto poucos os sinais e os avisos de que o nacionalismo ultra-eslavófilo vem ganhando terreno na Rússia de Vladimir Putin...

É importante lembrar a revitalização do ultra-nacionalista LPDR (Partido Liberal Democrático da Rússia) nas eleições de 2011; o registo oficial do partido neo-imperialista ROS (União de Todos os Povos da Rússia) em 2012, que usa as cores da bandeira imperial (dourado, branco e preto) e que tem mostrado fulgor em todas as projecções de intenção de voto; a declaração (simbólica!) da independência da cidade de Domodedovo em Outubro 2012, e isto apenas para mencionar alguns exemplos...

Curioso como o recrudescimento do nacionalismo ultra-eslavófilo tem ganho energias com o fracasso progressivo da Europa da União, a tal alternativa, o tal espaço de igualdade e solidariedade transnacional. Com a União Europeia afundada numa crise que parece não ter fim, porque a União tem muito pouco de unida, a melhor alternativa é a reconstrução do esplendor de Moscovo; o único caminho é erguer-se uma terceira Roma, com pronúncia eslava.

O Urso tem as garras de fora? Tem... Sempre as teve. Só que agora está a usá-las...


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