E no silêncio fracciono-me...

É extraordinário o tempo que passamos connosco mesmos quando vivemos num país onde não dominamos a língua. Quando, apesar da sala estar cheia e do ruído da conversa marulhar com a delicadeza das ondas em praia-mar, estamos sós! Não é silêncio puro o que nos rodeia, mas também não chega a ser ruído. E, quando damos por isso, nem queremos saber o que é.

É extraordinário como de repente percebo que há muito que não falava comigo. Era fácil fugir ao silêncio. Era cómodo deixar que a língua de Camões, Queiroz e Pessoa embriagasse o silêncio. E a conversa adiou-se. Percebo agora que inventamos modos de fugir ao silêncio, mesmo quando caminhamos sozinhos aguardamos pelo som de uma mensagem, de uma chamada, ou usamos headphones para bloquear o silêncio. Mas o silêncio é persistente...

E agora que estou num país onde a língua dominante só aos poucos me parece familiar, num país onde nem 100 vocábulos sei ainda (ao que parece, alguns linguistas dizem que com menos de 7000 palavras não se consegue ter domínio basilar sobre a língua), num país onde as conversas trazem ruído mas deixam passar o silêncio, o silêncio, ele mesmo, começou a falar comigo. E, na verdade, fico contente que assim seja.

O silêncio mostrou-me o que eu não sabia, ou se sabia ignorava. O silêncio guiou-me por mim mesmo e desmontou-me em pedacinhos, como quem desmonta um puzzle mal montado apenas para o reconstruir. Mas antes de construirmos o puzzle, de voltarmos a dar sentido às peças, o silêncio pediu-me que olhasse para as peças. Pediu-me que antes de admirar a beleza do todo, que contemplasse a elegância da parte. E assim fiz!

E no silêncio fraccionei-me. E vi que de súbito não sou tão inteiro como julgava. Entendi, a olhar para as peças, que sou o que sou exactamente por aquilo que não sou. Sou um puzzle incompleto. Um puzzle na perenidade do inacabado. Um puzzle sempre em busca de mais peças. Um puzzle que tendo sido desmontado, pelo erro do que reflectia, nunca ficará terminado agora que se auto-entende. Sou um puzzle por terminar e isso deixa-me feliz.

Sou um puzzle de rosto e nomes. Sou criatividade em estado puro: sou Maria e não Tiago; sou urbanidade com um sorriso: sou Carolina e não Tiago; sou energia sem medo de arriscar: sou Inês e não Tiago; sou doçura com a força de um tufão: sou Catarina e não Tiago; sou organização para ter estabilidade: sou Carlos e não Tiago; sou perspicácia e amor incondicional: sou Filomena e não Tiago.

Sou feito de tudo isto e de mais, muito mais. Sou um fracção, sou um somar de peças que nunca terminará. E apenas o silêncio me ensinou isso! Era isso que ele, o silêncio, me queria dizer; era isso que eu sabia que ele diria; era isso que não desconhecendo, ignorava. E para quê? Sou feito de peças, sou um somatório do que não sou, mas é por isso mesmo que eu sou assim. É por deixar que as peças se liguem, se conectem, se completem.

Sou feitos de pedaços que não são Tiago e que não sendo Tiago fazem de mim o que sou. E isso, esse saber do que sou feito, devo-o apenas a ele: ao silêncio. É extraordinário o tempo que passamos connosco mesmos quando vivemos num país onde não dominamos a língua. Mas é mais extraordinário perceber o tempo que perdemos sem estar connosco mesmos...

(Excerto de um algo que começa a ganhar forma, escrito em Kirikkale, Turquia)


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