E o café soube a isso tudo...

A noite acontecera. Não existe melhor forma para descrever a noite que passara. Porque não sei se dormi, se não dormi, se dormi não dormindo. Porque não sei e isso, sinceramente, nada acrescenta. A noite passara e eu perdera-a. A última lua antes da partida. O último sussurrar do vento pelos cantos de um bairro labiríntico em paredes e segredos. A última noite passara.
O gesto simples de abrir a cama, puxar os cobertores para o fundo da cama e tapar-me com o lençol a ver um qualquer filme russo, turco, iraniano, uzbeque, o que fosse, transformado em segundos numa memória. Um gesto que repetirei, por certo, mas não no dia seguinte, nem na semana seguinte, nem no mês seguinte. A última noite perdera-a. Passara por mim e eu nem sei se a dormi, ou se não a dormi.
A convicção de que tudo ia mudar, de que muito começaria após aquele dia mas muito ficaria também por começar e por acabar, levou-me aos rituais da higienização matinal. Material pouco digno de literatura a que pouparei o simpático leitor. Basta saber que eu perdera a última noite e que preparava o último dia.
Vi o rosto d'Ela pela primeira vez no corredor. Tentou sorrir-me, mas não conseguiu mais do que um pálido esboçar de alegria, misturado com um Evereste de tristeza. E, porque me queria sereno, seguiu para a cozinha e eu fui, pela última vez, arrumar o quarto onde perdera a última noite; a mesma noite que não sei se dormi, ou não dormi...
Arranjei-me com atenção aos detalhes; com uma minúcia de cinema documental. Cada cena arrastada, propositadamente lenta para se ler nas linhas, nas entrelinhas, nas linhas das entrelinhas. E cada cena ficou-me gravada na mente com a nitidez de uma tela de Gustave Courbet. Era ali o começo de um mundo, mas para isso fecharia outro. Coisas que o dom da ubiquidade poderia resolver!
E fui para a sala. E quando esperava pela caneca azul e pela caneca vermelha ali estavam elas, duas chávenas de porcelana. Duas chávenas elegantes, delicadas, trabalhadas para agradar a visão quando é do palato que tratamos. Duas chávenas que falavam mais do que os talk-shows matinais, onde a verborreia idiota há muito substituiu a inteligência da simplicidade.
Duas chávenas de café. Bonitas. Muito bonitas. E de tão bonitas penosas. Enchia-as de café para ocultar a sua beleza, mas o esplendor apenas se tornou mais evidente. A noite passara e em breve a manhã também passaria e o controlo dos segundos, que nunca foi meu, escapava-me como água do Tejo nos dedos de uma criança. As chávenas continuariam bonitas, continuariam na minha memória, continuariam ali. Só eu ia partir.
E o café soube a isso tudo. Ao amargo de um adeus que sabia inevitável, um adeus que eu escolhera, um adeus que eu ardentemente buscara... Ao amargo de uma despedida que se aproximava, porque era eu quem partia e não o tempo que nunca parte por nunca ficar, ao amargo de um último beijo que me levaria às lágrimas. Ao amargo da Saudade que sentia já, por saber que a sentiria depois.
E o café soube a isso tudo. Ao mel dos sonhos que se cumpriam, ao mel dos sacrifícios desabrochados em conquistas, ao mel do "tudo valeu a pena"! Ao mel de poder crescer, dar mais um passinho em frente, fazer-me gente. Ao mel de puder ver naqueles olhos, carregados de lágrimas e de ternura, orgulho genuíno. Ao mel de saber que partindo ficaria ali, guardado em memórias e em recordações doces.
E o café soube a isso tudo. E a noite perdida, que não sei se dormira ou não; e as memórias gravadas com a lentidão reflexiva dos documentários experimentalistas (do tipo Sokurov!); e os olhos que vira carregados de sal e de sol. O café soube a isso tudo. E por isso embarquei feliz. Com o coração cheio de saudade tão envinagrada quanto doce; com o coração cheio de saber que voltarei, para poder voltar a partir; com o coração cheio de saber que o café pode saber a isso tudo...

(Excerto, de um algo que existirá mais tarde, pensado a sobrevoar os céus da Itália e escrito em Kirikkale)


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