Rasguei-me para ficar inteiro!

E de repente despi-me. Voltei a ser Eu. Caíram as máscaras sociais, os enfeites, os títulos, os nomes, os adjectivos, os feitos e os por fazer. Caíram projectos e objectos. E fiquei Eu! Uno. Humano e, por isso, talvez por isso, pequeno, indefeso. Fiquei despido, sem as roupas que nunca antes vestira, mas que achara que envergara. Vejo-me fora das armadilhas da Convenção.

Via-me numa prateleira dourada, qual Buda sorridente. Via-me a refulgir quando os quentes raios de sol batiam no meu rosto. E percebi que dormia; dormia há muito tempo. E vi-me despido. Não sou Buda no alto da Montanha, mas uma pequena lagarta, no seu pequeno casulo, no fundo de um Abismo, embalada pelos frios raios prateados da lua.

E vi-me inteiro. Senti, com os sentidos todos, e não apenas com a vista e com o som de aplausos e elogios. Deixei de entender discursos, para dominar as palavras que se engasgam na garganta e brotam pelas mãos. Vi-me despido perante um reflexo do que sou e, com franqueza e pequeneza, não me reconheci. Era assim que eu caminhava vestido sem roupas? Vi-me...

Senti-me infinitesimal. Pequeno. Reduzido à minha significância, que um dia terá significado, mas esse dia não será hoje. Senti-me uno, sem as maquilhagens do quotidiano, do mundano, do hábito. Senti-me ser aquilo que sou, ser esse ser desnudo que não se veste, mas se julga coberto por uma manta de ilusões. Vi-me inteiro e completo numa ucronia utópica. Senti-me por segundos.

O murro de ser humano acordou-me; mostrou-me o que interessa a essa larva que dança no seu casulo, na beira de um abismo que desconheço mas onde me conheço. E enquanto metamorfoseio o meu Eu, vou-me vendo, vou-me sentindo, ouvindo, cheirando, tacteando, explorando, desenvolvendo. E a explosão da transformação, do nível seguinte chegará. O momento de rasgar a prata da lua e a trocar pelo ouro do sol virá, mas não sei quando... Nem quero saber...

Rasguei-me em pedacinhos, para me perceber inteiro, unitário, humano. E no meio dos milhões de reflexos, de vidros que estilhacei com as mãos que não tinha, soube que era eu. E percebi que me unificava, solidificava, voltava a ser Eu. Percebi que não andara para trás, mas que finalmente deixara de caminhar com as costas voltadas para a frente da estrada. E aguardo pelo fim da metamorfose, da noite, da prata, do abismo, do Eu que já é Ele...

E se não tiver risos e gargalhadas no Natal? Terei o conforto húmido das lágrimas salgadas e isso mesmo que não baste terá que bastar!


Comments

PC said…
Excelente!apenas e só...Excelente!

Patrícia Caeiro
Unknown said…
E é exactamente por isto que o Tiago foi o melhor professor que tive até hoje. Excelente, brutal, intenso. Obrigado por me mostrar como é que se faz.