Jantar para dois, numa mesa para doze

Foi com um sol vermelho, a mergulhar sobre a serra, que fechei as cortinas da antiga casa senhorial, onde por séculos vivêramos. Aquele era o nicho de uma família de orgulhosas águias, depenadas pela modernidade e pelo canibalismo económico. Restavam as memórias, espalhadas em faustosas molduras cobertas de pó e baças pelo passar lânguido do tempo.

Deixei que o som dos meus passos enchesse o corredor, imaginando o que teria sido o esplendor da casa senhorial, da minha casa senhorial, no seu apogeu. Chegámos a receber Reis de toda a Europa, alguns dos quais governaram reinos que desapareceram nos labirintos da História. E o som dos meus passos vai ecoando, mesmo que caminhe descalço, com a planta dos pés a beijar o macio gélido do mármore, porque evito o calor fofinho das passadeiras azuis.

Desci pela escadaria, onde em tempos as mulheres da casa senhorial, da minha casa senhorial, desciam esplendorosas; verdadeiras Imperatrizes em brilho, bom gosto e elegância. Enquanto desciam pela escadaria ostentavam jóias, lustravam ódios, poliam murmúrios e burburinhos, alimentavam memórias e deixavam que se construíssem estórias que a História não preservaria. E vou descendo.

A lua nova clama pelo domínio dos céus, acompanhada por pequenas pérolas reluzentes. O vento agitará ramos de árvores e dançará no meio das folhas que o jardineiro recolhera durante a tarde. Não sei se é isso que acontece, estou em casa, descendo a escadaria, posso apenas imaginar. Deixar que a imaginação viva o que a mortalidade, a humanidade e ausência de omnipresença me furtam de experimentar. Talvez fosse bom pensar em jantar.

Abro o armário de mogno envelhecido que, para minha desilusão, não chia. Acho chique, literário por certo, ouvir as portas dos armários a chiar, como descrevem nos grandes romances; naqueles que realmente importam. Mas o meu armário não chiou. Sou persona, mas não sou personagem. Rio-me das minhas divagações na hora de pôr a mesa.

Retiro o melhor serviço do armário; debruado a ouro e com motivos florais estilizados pintados à mão por artífices de Hamburgo. Ainda não percebi porque associamos elegância e importado, mas é o que fazemos e não me apetece pensar mais nisso. Retiro os copos de cristal, o serviço de prata, com um fio de ouro de lei (o que será ouro fora-de-lei?), e o jarro mais bonito que tenho. Conto os lugares na mesa: doze. Penso nos comensais: dois.

Não quero comer sozinho, ou entregue apenas a mais uma companhia corpórea. Convido as memórias, as alegrias, as angústias, as agruras, as ternuras, as experiências a sentarem-se à mesa. A viveram num segundo as eras do mundo. Convido-as a ensinarem-me a viver e não a adiar os meus dias. A criar pretextos e contextos especiais, quando o especial é o aqui, o agora, o que importa, o que é real.

Doze lugares, doze cadeiras, doze guardanapos, quarenta e oito pratos, trinta e seis copos, um batalhão de talheres, dois jarros (que o mais bonito apenas não chega) e três jarras com as rosas que ainda restam no jardim. Dois comensais numa mesa para doze, mas apenas eu estou no salão da casa senhorial, da minha casa senhorial. Apenas eu. Eu.


Comments

Unknown said…
eu queria comentar, juro que queria, mas não consigo.

quero mais workshops para escrever assim!
Unknown said…
Poderemos sempre pensar nisso Francisco. Estes posts têm sido importantes, verdadeiramente terapêuticos para mim!