Afeganistão: salvação ou adiamento?

E o Afeganistão lá saiu do impasse político em que mergulhara desde meados de Junho. Isto porque ainda não eram conhecidos os resultados da segunda ronda e já Ashraf Ghani (que fora Ministro das Finanças entre Junho de 2002 e Dezembro de 2004) e Abdullah Abdullah (antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros entre Outubro de 2001 e Abril de 2005) clamavam vitória.

Os dois candidatos, incapazes de reunir uma maioria de 50%+1 voto na primeira ronda, pareciam incapazes de aceitar os resultados da segunda ronda... Um desfile de acusações, de suspeições, de interdições judiciais, paralisou a vida política em Kabul. Porque quem acha que o Presidente e o governo do Afeganistão controla, de facto, muito mais do que Kabul conhece pouco da realidade local...

Após um momento de tensão entre os dois candidatos, que parecia adivinhar um cenário estilo Costa do Marfim em 2010, a ONU veio para o terreno e conseguiu-se um acordo. Ashraf Ghani será Presidente do Afeganistão e Abdullah Abdullah subirá a Primeiro-Ministro com poderes reforçados. Nas eleições em democracia a derrota faz parte do jogo; nas eleições no Afeganistão a coisa é diferente...

Com a Síria e o Iraque sob ataque das forças do Estado Islâmico, com a Líbia na eminência do colapso total, com o Yemen em estado de tensão (com um novo Acordo assinado recentemente entre rebeldes Houti e governo), com os Curdos a subirem de tom o clamor independentista, com o Egipto e o Irão em momento incerto, o mundo "ocidental" não podia deixar fracassar o Afeganistão.

Mas o acordo conseguido abre portas a uma série de cenários complicados. Um acordo de partilha de poder, como aquele que foi desenhado, implica uma cultura democrática madura e não um esquisso institucional de tipo pastiche importado por quem parece ignorar, ou perceber pouco, uma série de contextualidades locais. E no caso do Afeganistão, as contextualidades locais são vitais para serenar a arena política.

O acordo pode abrir caminho a uma situação de tensão como a que se viveu na Geórgia pós-eleições parlamentares de 2012, que obrigaram a uma coabitação tensa entre Mikhail Saakhasvili (na altura Presidente) e Bidzina Ivanishvili (que passou a ser Primeiro-Ministro) que originou, entre outros episódios, a "guerra das amnistias". E a Geórgia de hoje está longe de estar mais pacífica...

O acordo pode abrir caminho, por outro lado, a episódios como a Crise Constitucional na Roménia em 2012 ou ainda iniciar um período de protestos delongados, com as duas facções a maquinarem os seus apoiantes, transformando o Afeganistão numa nova Bulgária que está sob protesto desde o começo de 2013.

O acordo, apontado como uma vitória da diplomacia, que de facto o foi, é contudo prova da derrota da implementação de uma democracia de tipo pastiche, que não respeita os fluxos do poder tradicional e as instituições, informais e semi-formais, que, de facto, controlam o poder no Afeganistão.

O acordo que parece salvar o Afeganistão pode, na verdade, ser apenas o adiamento de uma nova crise... E de crises o mundo, por agora, está servido! Em vez de se aplaudir o acordo, que serve de tampão, deveria sim pensar-se em redesenhar o esquisso institucional e constitucional do Afeganistão adoptando-o à realidade local.

Para começo, sugere o Fidalgo, dar mais poderes ao Loya Jirga (Grande Assembleia) e acelerar o envolvimento dos líderes tribais e dos clãs na governação local. O uso de eleições não deve ser descartado, mas deve ser reforçado com uma transformação do sistema de ensino voltado para questões de Cidadania e Responsabilidade Política. E a prazo repensar se o país não devia optar pelo Parlamentarismo, em vez deste quasi-Semi-Presidencialismo.

Não precisamos inventar nada, quando um país como o Afeganistão já criou tanto... Não precisamos importar modelos que obviamente não funcionarão, porque as contextualidades locais são outras. Não precisamos ignorar o óbvio, porque esse óbvio tenderá a morder-nos o tornozelo... Não precisamos errar quando acertar é possível! Para quê adiar, fingindo salvar, se salvar é o objectivo?


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