Democracia (real e substantiva) procura-se...

Uma leitura rápida pelos noticiários deixa a impressão de que muitos países ditos democráticos, ou em transição para a democracia, falharam nos seus intentos. Golpes de estado, guerrilha política, guerra civil e uma panóplia de outros horrores parece mostrar o fracasso da Democracia... A ideia, contudo, não podia estar mais errada!

Nos anos 1990, com a implosão da União Soviética e a desintegração da Jugoslávia, o comunismo sofreu um rude golpe. Investigadores, académicos, transitólogos e actores políticos entraram num frenesim meio histeriónico de que a democratização seria o único final possível para os novos estados... Eram os tempos do Fim da História de Fukuyama e do "caminho único".

Nada mais errado! Não porque a Democracia não funcione, ou porque seja um sistema incapaz de se adaptar a todos os países, mas porque o que se operou não foi uma transição para uma democratização mas antes para o eleitoralismo procedimental. Democracia passou a ser reduzida ao acto de poder votar, sem o cuidado em se desenvolver um pano de fundo cultural democrático...

A disputa no Afeganistão e na Indonésia pela cadeira presidencial, com os dois candidatos a reclamarem vitória e a clamarem inúmeras irregularidades nos respectivos sufrágios, demonstra como sem uma cultura democrática o eleitoralismo procedimental redunda num esquisso institucional débil; incapaz de construir consensos e de levar a compromissos.

A queda de regimes sufragados no Egipto, no Quirguistão e na Ucrânia demonstra como sem o desenvolvimento de uma cultura democrática, as eleições se transformam facilmente num"carimbo" pós-revolucionário e pós-golpe de estado e não no mecanismo de "responsabilização" dos actores políticos e "avaliação de resultados" alcançados durante o mandato.

Os sufrágios ritualistas na Líbia, no Turquemenistão ou no Sudão apenas enfatizam a debilidade de um mecanismo procedimental, sem um trabalho de fundo. Na verdade não se operaram transições para a democracia no pós-1990; operaram-se sim operações de "importação" do eleitoralismo ocidental considerado superior numa lógica neo-colonial e paternalista... Só podia dar asneira...

A transição para a democracia é um processo complexo que não implica apenas uma abertura aos mercados (liberalização), aos voláteis hiper-nervosos e irracionais mercados. A democracia implica uma reconstrução das instituições políticas (modernização); implica uma reconstrução do projecto estado que envolva o cidadão (statehood) e implica um adensar do laço mnésico-histórico-afectivo entre os sujeitos que partilham o mesmo estado (nacionalismo).

O processo da transição é assim composto de, pelo menos, quatro vectores... Mas a maioria das transições operadas desde os anos 1990 até aos nossos dias apenas dão atenção aos dois primeiros, descurando a importância estrutural dos dois últimos. E no final a Democracia parece falhar!!! Mas não se pode dizer que falha, aquilo que não se aplica...

O que falhou foram as transições decididas nos confortáveis gabinetes de Washington e Bruxelas que confiaram mais em Lipset do que em Offe e Kuzio. O que falhou foram as transições decididas por quem foi incapaz de perceber as contextualidade locais, importando um esquisso institucional ao invés de adaptar um sistema político. Ou seja, a Democracia (em muitos casos) não falhou, porque ainda não foi aplicada.


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